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Jurista considera que ingresso de reitor da UFPB em curso por cotas é ilegal

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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito, além de colunista do renomado site Consultor Jurídico. Nesta quinta-feira, 10, ele escreveu sobre uma polêmica surgida na Paraíba. O fato e o reitor da Univdersidade Federal da Paraíba (UFPB), Valdiney Gouveia, ter sido aprovado para um novo curso de graduação na instituição através das cotas. “Ora, há prejuízo geral da sociedade. Transferência indevida de recursos. Fere a isonomia e a igualdade. Outras pessoas — inclusive as que não passam por cotas — estão pagando para a fazer a felicidade de uma pessoa que já foi beneficiada (duas vezes) e agora se beneficia mais uma vez. Isso é inconstitucional. Parece evidente isso.”, escreveu ele no artigo que pode ser conferido na íntegra abaixo:

O reitor da UFPB e as cotas: o Direito serve para alguma coisa?

O reitor da Universidade Federal da Paraíba está fazendo o terceiro curso de graduação. Grátis. E entrou por cota. Bom para ele. Estudar sempre é bom.

Mas é legal isso? Um amigo disse: é legal, mas imoral. Discordo. E discordo porque essas coisas são indissociáveis. Dizer “é legal, mas imoral” tem um ranço positivista clássico, em que se separa direito e moral.

Quero, aqui, apenas mostrar os equívocos de quando se diz que “a autoridade tal cometeu um ato imoral… mas dentro da legalidade”. Oração adversativa. Seria o caso do magnífico reitor.

Pergunto: é ainda possível dizer, como se fazia “antigamente”, que uma conduta é imoral, mas legal (excluo as condutas criminosas, como explico em vários textos, justamente porque há um princípio por detrás — o da legalidade)?

Princípios são normas. E Direito é um conceito interpretativo. Já escrevi tanto sobre esses conceitos que não repetirei aqui. Como bem diz Dworkin, o Direito presta legitimidade à política, compreendida como poder administrativo, sendo que a política lhe garante coercitividade. Dizendo de forma mais simples: o Direito incorpora a moral. O Direito não ignora a moral, pois o conteúdo de seus princípios depende dessa informação. Já escrevi também milhares de páginas sobre isso. É imoral e é ilegal. Porque o Direito não é Direito se não funciona como Direito.

1. Queremos construir uma República de aproveitadores? Ou, “em nome da lei”, tudo vale (ou vale-tudo)?
Se eu fosse resumir a Constituição em uma frase, diria: esta Constituição visa a desigualar a desigualação. Assim se justificam as cotas. Vêm para desigualar aquilo que é desigual. Logo, se alguém quiser dar o drible nisso, ferirá a CF.

Cada texto jurídico-normativo (regra/preceito) não pode se colocar na contramão desse desiderato, digamos assim, virtuoso, propagado pela Constituição. Nem estou falando, ainda, do famoso princípio da moralidade (e seus congêneres).

Daí que é fácil concluir que não queremos uma República em que a esperteza seja a regra e que achemos absolutamente normal (e por que não, legal — sic) o aproveitamento das benesses originárias do espaço público.

Lembro aqui — e falei disso muitas vezes — do episódio em que deputados levaram em viagens namoradas e familiares. Pior: o TCU chegou a dizer que, se havia resolução autorizativa, não havia problema. Só (sic) no plano da ética.

Parece que a “tese” seria essa: para ser legal, basta fazer uma “leizinha” ou um “regulamentozinho” qualquer. Autorictas non veritas facit legis. Ora, imaginemos um dispositivo que diga que os parlamentares serão chicoteados ao anoitecer em caso de ofenderem mulheres ucranianas. Poderíamos usar o látego? Afinal, seria legal, pois não?

A questão é saber se as virtudes soberanas previstas na Constituição “suportam” essa “legalidade” (mundo de regras que, se não permitem os ab-usos, também não os proíbe…, mandando às favas, com isso, os princípios que regem o Direito Administrativo).

Legalidade ad hoc. Isso não é Direito. A imoralidade é cooriginária. República não convive com a não isonomia.

O enunciado “O Brasil é uma República” ficou vazio de conteúdo. Anêmico. Afinal, o que é uma República?

Os princípios são deontológicos. Funcionam a partir do código lícito-ilícito. Antes de se dizer que uma conduta fere apenas (?) a “moral” ou a “ética” (como definir isso?), não seria melhor olhar com mais acuidade/profundidade o que diz o conjunto de regras e princípios do sistema jurídico? Não seria melhor fazer uma interpretação constitucional do regramento?

2. O caso do reitor: se é proibido carregar cães, pode-se levar ursos e jacarés?
Ao que consta, o reitor e a assessoria jurídica da UFPB se basearam no “não é proibido que o reitor assim aja”. O sindicato dos professores disse que a atitude do reitor era legal. Algo do tipo “se é proibido carregar cães na plataforma, pode levar um urso”. Pronto. O reitor já cursou dois e agora vem o terceiro. Por conta da viúva. E entrando por cota.

Pergunta de um milhão: para que servem, mesmo, as cotas? Lembremos: esta CF veio para desigualar a desigualação. Tudo o que falei acima inquina de inconstitucional a conduta do magnífico.

Alguém dirá: há uma decisão do TRF-4 que contesta a minha tese, verbis:

“A lei 12.711/12 não previu expressamente a vedação a que pessoas já formadas, que já tenham concluído o grau superior, possam participar de novo processo seletivo se valendo de cotas sociais. Não havendo prejuízo a outrem, é de se manter a autora no curso de medicina”.

OK. Mas, vamos lá. Como assim “não havendo prejuízo”? Então as vagas são infinitas? Uma vaga não tem custo? Vagas de cotas são grátis, podendo ser distribuídas por atacado? Ora, há prejuízo geral da sociedade. Transferência indevida de recursos. Fere a isonomia e a igualdade. Outras pessoas — inclusive as que não passam por cotas — estão pagando para a fazer a felicidade de uma pessoa que já foi beneficiada (duas vezes) e agora se beneficia mais uma vez. Isso é inconstitucional. Parece evidente isso. Se há distribuição de refeição para pobres e cada um ganhará um prato, por qual razão alguém poderá reivindicar dois pratos? Ou três? Ora, se se fornecer para um, os demais não terão esse direito? Ah, mas não terá comida para todos. Eis a resposta. Tem custo. Igualdade. Isonomia. Eis as palavras-chave. O governo, então, se quiser fazer copa franca e liberar vários cursos por cotas para cada utente, terá que prever isso em termos de políticas públicas. E não “permitir” concessões ad hoc. Na administração só se pode fazer as coisas autorizadas explicitamente por lei.

Ingressar pela segunda ou terceira vez por cotas é não republicano. Milhares ou milhões de pessoas que pagam (caro) pelos seus cursos — privados — estão pagando para a fazer a felicidade dos utentes como no caso do reitor. Quando se diz “isso não é republicano”, o que se está dizendo é que a conduta é reprovável. Fere o princípio republicano. Também fere a igualdade, porque provavelmente representa um privilégio.

E vou além: se a Constituição se destina a desigualar a desigualação, não deveríamos também analisar — no caso do reitor — a posição em que este se encontra? Se as vagas não são infinitas, não é melhor destiná-las a quem efetivamente precisa e carece de recursos? Se havia essa vaga, não deveria o reitor oferecê-la a quem não tem nenhum curso? Por que beneficiar aquele que já ostenta cargo público e é remunerado por isso?

Direito é uma questão de caso concreto, de modo que não é possível dizer que, se não há previsão legal, então quer dizer que é permitido. Ledo engano. Direito não é assim.

Aqui é possível também trazer o exemplo do art. 254 do Código de Processo Penal: se o rol inserido nesse dispositivo é taxativo, então o juiz não precisa necessariamente ser imparcial. É só não ser inimigo capital do réu, seu amigo íntimo, etc. Isto é: alguém pode sustentar que, por não ser proibida a parcialidade, ela seria permitida? Cães na plataforma… ursos… O que não é proibido é permitido?

O Direito não pode ser uma coisa simplista. Se não existir regra proibitiva, isto não quer dizer, automaticamente, o contrário. Insisto: parece evidente que a não proibição não gera, per se, uma permissão. Se quiserem, trago uma lista de coisas que, não proibidas, não podem ser simplesmente permitidas. E a coisa se agrava se tratarmos da administração pública. Do Direito Público.

Tentarei ser mais claro ainda. Na Colômbia ocorreu um caso interessante. Em sua Constituição (Art. 126), está posto que juízes e funcionários públicos em geral não poderiam contratar familiares das pessoas envolvidas em sua nomeação. O que alguns magistrados fizeram? Contrataram as próprias pessoas envolvidas. Magistrados da Corte Suprema de Justiça designaram ex-juízes que haviam participado dos seus processos de nomeação para cargos no alto escalão do judiciário. Argumento: era (só) proibido contratar parentes dos juízes, mas não os próprios. Genial, não? O Conselho de Estado precisou declarar o óbvio: a nulidade dessa prática (ver nesse sentido o livro A Discricionariedade nos Sistemas Jurídicos Contemporâneos — Juspodivm, coletânea que ajudei a organizar). O caso colombiano se parece muito com o caso das cotas do reitor.

3. Numa palavra final: o Direito não pode fracassar
Por tudo isso, quero insistir: se o Direito não serve para resolver esses problemas, pode ser extinto (isso é uma ironia).

E que não precisemos mais dizer apenas que “a atitude de ministro, do secretário, do governador ou do reitor” é apenas imoral. Mas é legal. Então levemos ursos. Afinal, a lei proíbe apenas cães. Como na Colômbia, nomeemos os próprios. Afinal, estão proibidos apenas (sic) os parentes. Como no caso das cotas. O legislador não proibiu. Então pode cursar quantos cursos quiser.

 

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