Pesquisadora e jornalista, Mara Vidal foi professora universitária, mas nem mesmo fazer carreira no mundo da educação a preparou para o que seu filho João Yrapoan, na época com 12 anos, sofreu na escola por vir de família adepta do candomblé. “Ele foi chamado de macumbeiro e a reação da professora foi horrível. Com a justificativa de evitar o conflito, ela tirou o meu filho da sala”, conta.
Após nove anos do ocorrido, Vidal continua acreditando que a postura foi equivocada. “A professora ainda levou o menino para a casa dela. Ela precisava mediar o conflito, não tirar o meu filho da escola. Vai fazer isso sempre que houver discussão entre um branco e um negro?”, questiona.
A reação da professora pode ser explicada pelas descobertas de um estudo da Universidade da Carolina do Norte (UNC). Pesquisadores detectaram que professores têm maior predisposição em identificar emoções negativas, como raiva ou agressividade, em crianças negras do que em brancas.
E, ainda de acordo com o estudo, uma vez identificada essa emoção incorretamente, os profissionais da educação tratam os alunos de forma diferente, de acordo com o tom da pele.
Eles submeteram 178 professores —a maioria mulheres brancas— em formação a vídeos em que crianças exibiam expressões faciais para diversas emoções diferentes. Quando o retratado era um aluno negro, a chance de serem mal interpretadas era 36% superior do que um coleguinha branco ser julgado equivocadamente. Se fosse uma menina negra, o índice de erro era ainda mais alto, de 74%.
Os pesquisadores constataram ainda que os professores que mais cometiam erros ao identificar emoções de crianças negras eram justamente aqueles que tendiam a tratar melhor os estudantes brancos.
Para Denise Carreira, coordenadora institucional da ONG Ação Educativa, a diferença no tratamento é fruto do racismo. Essa discriminação afeta diretamente o acesso à educação e prejudica o rendimento escolar de negros e negras.
“Escolas em locais menos centrais e que atendem maior quantidade de negros costumam ter um índice de troca de professores muito alto. Com isso, entregamos a pior educação para quem mais precisa de educação”, diz Carreira.
Maior evasão escolar
Isso ajuda a explicar por que a evasão escolar é maior entre negros. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 44,2% dos homens e 33,3% das mulheres não haviam concluído o ensino médio em 2018. Entre brancos, o índice é bem menor: 5,9% entre homens e 18,8% para mulheres.
Além disso, a fuga da escola é um escoadouro de dinheiro, segundo um estudo recente da Fundação Roberto Marinho e do Insper. O custo para um aluno concluir os 14 anos da educação básica é de R$ 90 mil, mas a evasão gera perdas de R$ 372 mil ao ano.
Aqui no Brasil, pesquisadores também já identificaram que a conduta do professor muda conforme a aparência do aluno.
Para Carreira, não há caminho para reverter a desumanização provocada pelo racismo que não passe pelo professor. Uma solução para a rotatividade em áreas vulneráveis seria incentivar educadores a permanecer nessas regiões por mais tempo.
Falta de reflexão sobre a sociedade brasileira
Ainda assim, resta o problema do viés discriminatório. Para fazer da escola um ambiente antirracista, a Ação Educativa desenvolve desde 2015 os “Indicadores de qualidade racial da educação”.
No documento, a ONG trata o problema do corpo docente como uma falta de reflexão a respeito da complexidade da sociedade brasileira: “Muitos profissionais de educação nunca tiveram oportunidade de refletir sobre seu pertencimento racial, sua identidade de gênero (como se sentem como mulheres e homens), sobre o lugar das pessoas negras e da cultura afro-brasileira em suas vidas e sobre como o racismo está presente na trajetória pessoal e profissional”.
Outro dos entraves para a educação ser de fato antirracista é a distância entre as propostas pedagógicas e o que, de fato, é praticado na sala de aula, diz Sueli dos Santos, 48 anos, diretora da Escola Municipal Brigadeiro Faria Lima, na Aclimação, zona sul de São Paulo. As formações de licenciatura, por exemplo, ainda estão se adaptando ao ensino da cultura afro-brasileira —e isto virou lei há 17 anos.
A própria Santos lida constantemente com questões raciais ao interagir com alunos. “Eu tenho duas vice-diretoras, que são brancas, e é impressionante como as próprias crianças as identificam como diretoras, mas não a mim. Muitos pais ficam surpresos e questionam: ‘Você é a diretora. Aí fica aquele silêncio constrangedor. É até engraçado”, comenta.
Dentro da sala de aula, não é muito diferente. Humberto Baltar, professor de inglês na rede pública municipal do Rio de Janeiro, conta que já foi discriminado quando aluno, no Colégio de Aplicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e agora, como docente.
Constantemente chamado de Cirilo, por causa do personagem da novela Carrossel, ele teve pouco contato com história negra em aula. Incentivado a treinar atletismo por uma olheira do Fluminense, foi convencido do contrário pelo pai. A opção por largar as pistas e focar nos estudos foi estranhada pelos colegas.
Hoje, a dificuldade é fazer os alunos o reconhecerem como professor de inglês. “É rotina. Chego à sala de aula e não me identificavam como um professor. Eu espero, sento com os estudantes e do nada começo a falar inglês. Só então, notam quem é o professor.”
Pai de Apolo, de um ano, Baltar criou o grupo “Pais Pretos” para dividir as experiências em aula. Eles discutem desde questões sobre preocupações sobre os filhos andando sozinhos na rua, uso de boné ou cuidados na relação com a polícia. Não raro, surgem casos em que docentes não percebem que alguns conteúdos perpetuam o preconceito. “Tivemos um caso no coletivo de uma criança que era obrigada a interpretar na escola um texto de Monteiro Lobato, um escritor racista. É um trabalho muito difícil fazer essa mediação, explicar o conceito e dizer para uma criança que ele é racista”, lamenta.
A coordenadora da Ação Educativa não esconde que o problema é crônico por ter relação direta com um cicatriz histórica do Brasil. “É uma herança do mito da democracia racial, de que a convivência entre brancos e negros sempre foi pacífica, essa mentalidade acadêmica foi sendo difundida no Brasil principalmente a partir da década de 50”, afirma Carreira.
Por mais que mantenha ambientes de discussão com outros pais e mães negros, o professor Baltar não tem respostas para as perguntas que o pequeno Apolo vai fazer quando cenas de discriminação baterem à porta. “Não tenho ideia de como vou tratar essas questões com o meu filho.”