Bertrand Lira

Bertrand Lira é cineasta e professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPB/Campus I
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‘Medusa’ aborda o terror do fanatismo político-religioso no Brasil de hoje

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Parece um exagero, se a vida fora da tela não mostrasse uma realidade pior. Logo no início do longa-metragem ‘Medusa’ (2021), escrito e dirigido por Anita Rocha da Silveira, um grupo de mulheres histéricas e mascaradas agridem uma transeunte, à noite, numa rua deserta de uma metrópole, simplesmente por ser considerada, sob a ótica das agressoras, messalinas, vadias e pecadoras. Outros ataques se sucedem. ‘Medusa’, que estreou em 2021 na Première Brasil Festival do Rio, e nas salas de cinema este ano, esteve em cartaz no Cine Banguê do Espaço Cultural até a semana passada e está disponível na Vivo Play, Claro Tv, Oi Play e MUBI. O filme brilhou no Festival de Cinema de Toronto e na Quinzena de Realizadores de Cannes, além de diversos festivais internacionais.

No filme, segundo longa-metragem da diretora Anita Rocha, o grupo religioso de patricinhas (As Preciosas do Altar) faz números musicais gospels iluminados pela luz fria de neon – o que remete diretamente ao filme ‘Divino Amor’ (Gabriel Mascaro, 2019), no visual e na temática. Elas têm encontros de “reconhecimento” buscando uma relação afetiva com rapazes da mesma igreja (“os vigilantes de Sião”) que exercitam seu louvor com coreografias militares. Tudo muito calcado na realidade e bastante difundido nos vídeos que “vazam” na internet.  O que pode ser risível é bastante assustador. A diretora e roteirista teve notícias de ataques a jovens “promíscuas” na imprensa.

Essas garotas, que se consideram as paladinas da verdade e animosas defensoras da moral e dos bons costumes, não são representadas (visualmente) como neopentecostais típicas com saias abaixo do joelho, blusas cheias de babados e mangas frouxas, com cabelos presos em coque ou com uma longa trança, carregando uma bíblia debaixo do braço. As fundamentalistas, ao contrário, são jovens despojadas, usam jeans, camisetas e cabelos como qualquer jovem de sua geração. 

Percebi neste nestes detalhes, uma interessante caracterização das personagens, incluindo os jovens ‘vigilantes de Sião”. São jovens que estão na moda. Nesse sentido a diretora foge do estereótipo que associaria um figurino conservador a um grupo religioso específico, os neopentecostais, quando sabemos que na igreja católica grupos ultraconservadores também se alinham no discurso preconceituoso e armamentista da extrema direita identificado com o bolsonarismo. Não é incomum as ameaças e depredações de terreiros nas favelas onde milicianos e evangélicos se perfilam para perseguir os praticantes de religiões afro-brasileiras.

Entre “as preciosas” fundamentalistas está Michele (Lara Tremouroux), influenciadora digital que dá dicas de maquiagem para garotas que por “acidente” (leia-se agressões dos companheiros) tragam marcas no rosto. Michele é a namoradinha de um “vigilante de Sião” e, ela própria, é a maior usuária dos ensinamentos que divulga nas redes sociais. Para não se desgrudar muito do Brasil de hoje, o líder religioso do grupo é um pastor candidato a um cargo legislativo (Thiago Fragoso). Mari (Mari Oliveira), nossa heroína, frequentadora dos cultos, tem seu rosto marcado com um corte, por consequência perde seu emprego numa clínica de estética e termina como cuidadora de um hospital numa ala para pacientes em coma. 

Lá, tem um encontro inusitado com uma vítima das “guardiãs da moral”, Melissa (Bruna Linzmeyer) que teve seu rosto, outrora belo, queimado e transfigurado. Com paradeiro desconhecido, Melissa termina sendo objeto do desejo sádico dessas mulheres de conferirem sua face deformada. O título ‘Medusa’ é inspirado no arquétipo da mulher bela e punida por se deitar com um homem alheio, Poseidon, causando a ira de Atena. ‘Medusa’ é um filme de terror, apesar de momentos cômicos, uma distopia, digamos, bastante realista, porque não fala de uma sociedade imaginária, mas bem real e que veio à tona com força nos últimos anos e da qual esperamos escapar. O primeiro longa da diretora, ‘Mate-me, por favor’ (2015) foi selecionado para o Festival de Veneza e está disponível na Netflix.

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