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‘Cine Marrocos’ insufla imaginação na seara da objetividade documental 

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O filósofo francês Étienne Souriau (1892-1979) mencionou pela primeira vez o conceito de “afílmico” para a realidade do mundo histórico, concreto, independente da arte cinematográfica, um mundo que pode ser verificado, ao contrário do mundo ficcional, em parte imaginado,  e que tem suas próprias leis. Cine Marrocos (2021), direção e roteiro de Ricardo Calil, embaralha esses mundos de forma magistral e comovente para falar da realidade dura dos sem-teto na maior metrópole da América Latina. O filme tem estreia dia 3 de junho nas salas de cinema.

O documentário já nasceu inventando quando Robert Flaherty, com Nannok, o esquimó (EUA, 1922), encenou situações para a câmera e organizou sua narrativa numa estrutura dramática com as convenções da ficção, já consolidadas naquela década, para representar o cotidiano dos inuítes, esquimós do norte do Canadá. As vanguardas dos anos 1920 enriqueceram a linguagem documental com suas experimentações em documentários cuja ênfase estava na plasticidade das imagens captadas do mundo histórico, trabalhando relações associativas de volumes, contrastes, ritmos, etc. Esse subgênero do documentário foi nomeado de “poético” pelo teórico Bill Nichols.

As décadas seguinte foram inflacionadas pelo chamado documentário “clássico”, (expositivo), com uma voz over onisciente e onipresente conduzindo a narrativa até que os grupos do cinéma vérité (Jean Rouch, Edgard Morin, Louis Comolli, Chris Marker, entre outros), na França, do direct cinema de Robert Drew (EUA), e do candid eye (Canadá) surgissem, no início dos anos 1960, para dar uma chacoalhada na mesmice do gênero. Nas décadas seguintes, novas modalidades da narrativa do real agregaram valor ao gênero, como o documentário “reflexivo” (metalinguístico) e o “performático” (autobiográfico).

Com Cine Marrocos, Ricardo Calil documenta duas tragédias sociais: o infortúnio dos sem-teto na cidade de São Paulo e dos imigrantes no mundo. De quebra, chama atenção para a decadência das salas de cinema, outrora templos de entretenimento e de cultura,  abandonadas à sorte, muitas delas de significativo valor histórico. A cena inicial do documentário de Calil impressiona com a imagem da plateia vazia de uma sala de cinema e suas poltronas puídas, contrastando com a voz over de um locutor que exalta, entusiasticamente, o primeiro festival de cinema de São Paulo no ano de 1954. Com imagens em preto e branco de um cine jornal da época, nos deliciamos com a presença de grandes nomes do cinema mundial (Erich von Stroheim, Abel Gance, Joan Fontaine, Erroll Flynn, entre outros)  adentrando o Cine Marrocos, a maior e mais luxuosa sala de cinema da cidade de então. 

Da narrativa da tomada do Cine Marrocos por estrelas do mundo do cinema para a notícia num telejornal da ocupação dos trabalhadores sem-teto de “um antigo cinema no centro da capital”, somos iniciados numa narrativa cheia de contraposições entre o mundo da fantasia do cinema e o mundo real. Calil sabe muito bem que o discurso documental não deve subserviência ao factual e que a produção de eventos para a câmera enriquece uma abordagem fílmica sobre o realidade.  Ciente disso, reúne uns vinte personagens (atores e atrizes sociais) com seus dramas reais e os faz encarnar personagens criados e eternizados para e pelo cinema. 

Cine Marrocos não foge às entrevistas e depoimentos para a câmera – uma estratégica do cinema direto da vertente “participativa/interativa” banalizada desde então na grande maioria dos documentários. Elas vão entremear o artifício brilhante do diretor, a encenação da encenação, para compor sua história.  Na sua engenhosa maquinação, Calil produziu uma vivência de teatro com um grupo reduzido de moradores do prédio para, com isso, homenagear o universo do cinema: a sala que projetou tantas histórias e o cinema que produziu tantos sonhos.

A primeira homenagem se dá com a projeção de um filme que fala de cinema,  Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder, 1950), para a uma numerosa plateia de trabalhadores sem-teto do prédio ocupado, no momento em que o lendário produtor Cecil B. de Mille, interpretando um diretor em cena, pergunta à decadente Norma Desmond (Gloria Swanson) se ela está pronta para a tomada. São exibidos ainda A Grande Ilusão, de Jean Renoir, Júlio César, de Joseph L. Mankiewicz, Noites de Circo, de Ingmar Bergman, e Pão, Amor e Fantasia, de Luigi Comencini, filmes que encantaram o público do lendário festival no Cine Marrocos. 

Através do Cine Marrocos, a sala, e do Cine Marrocos, o filme, conhecemos as dolorosas histórias de uma dezena de personagens, brasileiros e estrangeiros, entre centenas de moradores do prédio, que decidiram fazer a oficina de teatro para depois encarnar personagens imortais desses clássicos do cinema mundial. Numa remontagem primorosa desses filmes, vamos descobrir o talento de Volusia Gama, ex-bailarina, na pele de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses; Tatiane Oliveira na da atriz sueca Herriett Anderson; O congolês Junior Panda na de Jean Gabin, dizendo suas falas na sua língua materna (Lingala), substituindo o francês original de A Grande Ilusão. Todos impagáveis.

Os novos atores e atrizes do Cine Marrocos se alternam na tela com os intérpretes originais em cenas com o mesmo padrão visual (fotografia em preto e branco e formato de tela 4:3) desses filmes, numa magia que só o cinema pode nos proporcionar. Uma cena memorável é a do cantor camaronês Yamaia Mohamed interpretando o texto de Júlio Cesar em ritmo de rap. Do registro dos ensaios, com textos das cenas que vão se materializar na tela do Cine Marrocos, passando pelo “making off” das filmagens, Calil empreende uma sacada original com sua montagem e narrativa em abismo – além de alternar esses momentos de fantasia do cinema com relatos de histórias de perdas e sofrimento reais narradas pelos próprios personagens habitantes de uma sociedade desigual e excludente, onde o final dificilmente será feliz.

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