O desfecho da crise entre o agora ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o presidente Jair Bolsonoro é o tema de novo artigo da jornalista Patrícia Albuquerque no ParlamentoPB. “Com o intuito de dar continuidade ao seu “Bloco do Eu Sozinho” e inaugurar o verbete “divórcio consensual de um lado só”, eis que surge um presidente taciturno (tava a cara da morte, ele) para quebrar, num pronunciamento gélido, a coletiva, doce coletiva, de despedida de Mandetta (tava a cara da vida, ele). Confira a íntegra do artigo:
Raul e Nossa Senhora Aparecida, roguem por nós!
Parecendo ter sido (levemente?) inspirado no romance “Crônicas de Uma Morte Anunciada”, do jornalista, escritor, editor, ativista e político colombiano, Gabriel García Márquez, o enredo do curto estrelato do agora ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, teve seu desfecho no dia de ontem. No romance de Márquez, os irmãos Pedro e Pablo dão cabo da vida do jovem Santiago Nasar. No caso de Mandetta, não teve cabo, tenente ou general que conseguisse livrá-lo do triste e profetizado fim.
Com o intuito de dar continuidade ao seu “Bloco do Eu Sozinho” e inaugurar o verbete “divórcio consensual de um lado só”, eis que surge um presidente taciturno (tava a cara da morte, ele) para quebrar, num pronunciamento gélido, a coletiva, doce coletiva, de despedida de Mandetta (tava a cara da vida, ele). E apresentou à nação seu novo ministro: o inclinado médico oncologista Nelson Teich (tava a cara da Torre de Pisa, ele). Tenho cá minhas dúvidas se será um prazer conhecê-lo, ministro.
Nesses tempos em que a ordem é ficar em casa, fiquei. Fiquei pra descobrir e partilhar um fato sobre a vida do recém-chegado ministro. Ele não há de se importar, pois não foi de um dossiê hipersecreto que retirei tais informações. Foi o texto de Rubens Valente, do site UOL, que me fez perder alguns minutos de sono dessa madrugada. Por meio dele, soube que, há pouco mais de um ano, a Torre de Pisa, ops, Nelson Teich, em um vídeo institucional, alegando que o dinheiro para a saúde é “baixo” no Brasil, sugeriu que as escolhas médicas devem girar em torno de dois eixos, quais sejam: 1) a necessidade da população; 2) de quanto dinheiro se dispõe. Isso posto, e afirmando que as escolhas são inevitáveis, lança o suposto cenário: uma pessoa idosa, com doença crônica versus um adolescente que está com algum problema de saúde. Quando pensei que eu tinha entendido errado onde ele queria chegar, ele fez a pergunta (parafraseio-a a seguir) que me provou que não: uma vez parcos os recursos do SUS (Sistema Único de Saúde) no Brasil, quais vão ser as escolhas que você vai fazer? E vai além:
“… para ela (a pessoa idosa) melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que eu vou gastar para investir num adolescente que está com problema”.
E finaliza afirmando que o adolescente tem uma vida inteira pela frente, enquanto que o idoso pode estar no fim da vida.
Pausa: ele usou mesmo os verbos “gastar” e “investir” para se referir à vida de pessoas?, pergunta minha veia de linguista que, a essas alturas, pululam sabendo que não se tratou de uma mera escolha lexical equivocada.
Fim de pausa.
Além de uma visão simplista sobre vida e morte, esse exemplo, ou melhor, esse ‘não-exemplo’ infeliz atribui ao jovem uma longevidade que ninguém tem o poder de dar como certa. Ao idoso, que outrora encheu os cofres da União com sua mão-de-obra hoje enrugada pelo tempo, ele relegou o papel de um peso morto que o Estado está com preguiça de carregar nas costas. Não seria melhor cifrar logo cada faixa etária e fazer com que andemos, todos e cada um, portando crachás do tipo “valho tantos reais”, senhor ministro? Ah, só um lembrete amparado pela literatura: o jovem Santiago Nasar, aquele do Márquez, não teve “uma vida inteira pela frente”.
Na pública quebra de braço com o presidente Bolsonaro, o ex-ministro Mandetta lança mão da alegoria da caverna de Platão para jogar luz na discussão sobre o conhecimento e a ignorância, e também invoca Raul, afirmando que prefere ser uma metamorfose ambulante do que ter a velha opinião (DE)formada sobre tudo. Se Platão e Raul, juntos, não resolverem a parada, haveremos de ter Nossa Senhora Aparecida ao nosso lado também, amém.
Diante dos fatos, fico tentando imaginar algum horizonte possível daqui pra frente. Pouca coisa. Ainda mais quando o novo comandante desse barco chamado Ministério da Saúde tem um sobrenome que mais se assemelha a um Reich (trocadilho infame e desnecessário a uma hora dessas? Deus me livre de mim mesma, amém!).
Pausa porque o presidente, que estava calado até agora, acaba de me pedir para interferir no meu texto (deixei, do contrário ele faz bico e aí já viu…), proferindo algumas palavras de boas-vindas ao seu novo ministro: “Que seja consensual nossa união, até que minha caneta nos separe, amém”.
Raul e Nossa Senhora Aparecida, roguem por nós! E vamos ver para onde essa Torre de Pisa vai se inclinar e se, ao longo das próximas semanas, o inclinado vai ter condições de responder à pergunta que lhe devolvo, como bumerangue: “Quais vão ser as escolhas que você vai fazer?”
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