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Menina-mulher: leitura de “Preciosidade”, de Clarice Lispector

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“Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso. Que não se espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava. Que era intenso como uma joia. Ela.”

Diariamente, a menina de 15 anos, magra e feia, segue à risca o seu ritual de autoproteção: acorda antes de todos na casa; toma café rapidamente; entra em um ônibus, “séria como uma missionária”; atravessa o largo da Lapa, “como um soldado”; sobe em um bonde, onde se sentaria em um banco vazio ou ao lado de uma “asseguradora senhora”; atravessa o corredor da escola, em direção à sala de aula, e volta para casa na hora do almoço. Certamente, seus passos não são aleatórios, pois Ela é a “depositária de um ritmo” e guarda em si algo precioso que estaria intacto enquanto tudo permanecesse inalterado e não a olhassem, não a tocassem.

O conto “Preciosidade”, de Clarice Lispector, cuja história contou-se de forma resumida, integra o livro Laços de Família (1960), e, trata de alguns temas recorrentes e fundamentais na obra da escritora, a exemplo do olhar sobre o feminino e da alteridade. No centro da narrativa está a transformação de uma menina em mulher, o que acontece quando o seu “eu”, o seu universo interior precioso, entra em contato com o “outro”, o que se dá quando o ritual diário da personagem é quebrado e o seu ritmo alterado.

Considero a noção de ritmo (como o de um movimento regular e periódico) pode ser relacionada no conto às ideias de rotina, de ritual e de transformação, pois todas estão ligadas ao conceito amplo de tempo. Assim sendo, entendo o tempo como determinante em “Preciosidade”, já que a personagem principal do conto, sem nome, mas com idade bem definida, tenta proteger-se de uma mudança iminente (que cronologicamente se relaciona à proximidade do aniversário de 16 anos), submetendo-se a uma rotina marcada pelos ponteiros do relógio e por um ritmo determinado em cada etapa da batalha contra o contato com o “outro”, na qual a sua vida se transformara.
O combate só é perdido no dia em que a personagem quebra a rotina e sai de casa antes da hora. Desta forma, o tempo (nas confluências entre o cronológico e o psicológico) é determinante para o processo de transformação pelo qual passa a personagem do conto de Clarice.

De antemão, é preciso entender que o tempo é uma categoria que possui várias modalidades que têm em comum as noções de ordem (sucessão e simultaneidade), duração e direção. Dentro dessa multiplicidade, podemos falar, por exemplo, de tempos físico, cronológico, psicológico (ou vivido) e histórico, entre outros. No que se refere à narrativa, é preciso distinguir o tempo da história (o do conteúdo narrado), o tempo do discurso (o da linguagem ou expressão do conteúdo), e o tempo da narração (ligado ao ato de narrar).

Dito isto, lembramos que é ainda no âmbito da história que normalmente se estabelece a divisão do tempo em cronológico e psicológico, sendo o primeiro objetivo, relacionado ao período em que a fábula acontece, e o segundo, subjetivo, ligado à forma como a personagem vivencia o tempo. Em “Preciosidade” o tempo cronológico e a maneira como a personagem o vivencia são fundamentais para o percurso de transformação pelo qual ela passará na história.

Tempo e alteridade

No processo de caracterização da personagem do conto de Clarice Lispector, chama-nos logo a atenção um conflito primeiro entre a exterioridade da estudante de 15 anos e a sua interioridade. Por fora, como o narrador nos conta, ela é feia e magra, mas, por dentro guarda algo tão valioso como uma joia, o que é definido no texto como sendo propriamente “Ela”. Desta forma, o que havia de precioso na personagem era algo não visível para o mundo e que se contrapunha à sua aparência. Nesse quadro, manter essa preciosidade para a menina significava impedir que a sua interioridade tivesse algum contato com o “outro”, o que não aconteceria se a personagem mantivesse o seu ritual diário de autoproteção.

Diante do colocado, entendemos porque o narrador nos apresenta a personagem como alguém que se entendia como uma espécie de ser impessoal, que não deveria ter nenhum contato com o mundo exterior. À semelhança de uma santa, “como se tivesse prestado voto, era obrigada a ser venerada”. A ideia da impessoalidade da personagem fica ainda mais clara quando a menina é comparada a uma “filha dos deuses”: “enquanto executasse um mundo clássico, enquanto fosse impessoal, seria filha dos deuses, e assistida pelo que tem de ser feito”.
A alteridade também é tema de vários contos de Laços de família, como “O crime do professor de matemática” (no qual o “outro” do professor é um cachorro), “A menor mulher do mundo” (em que a pequeniníssima mulher de uma tribo pigmeu africana torna-se o “outro” do cientista que a encontrou) e “O búfalo” (em que a relação se estabelece entre uma mulher e um búfalo).

Em “Preciosidade”, a alteridade é representada pelo universo masculino, do qual a personagem, prestes a se tornar uma mulher, tem tanto medo que, para se proteger, estabelece um ritual diário que tem por objetivo de ser manter. “Então subia, séria como uma missionária por causa dos operários nos ônibus que ‘podiam lhe dizer alguma coisa’. Aqueles homens que não eram mais rapazes. Mas também de rapazes tinha medo, medo também de meninos”.

O sentimento de mudança iminente e, mais do que isso, de destino do qual não se poderia fugir, exacerbam na estudante o medo do contato com o universo masculino. Mesmo extremamente fechada dentro de si, Ela se apavora diante das mudanças pelas quais o seu corpo passa e que se tornam visíveis para todos. “Ela sentia vergonha de não confiar neles, que eram cansados. Mas até que os esquecesse, o desconforto. É que eles ‘sabiam’. E como também ela sabia, então o desconforto. Todos sabiam o mesmo (…)”.

Como se vê, o olhar da autora mais uma vez volta-se para o universo feminino, o que acontece na maioria dos treze contos que compõem Laços de família, quase sempre centrados no universo da mulher com enredos que trazem suas rotinas, mas que se voltam bem menos para os acontecimentos narrados do que para as sensações, sentimentos e experiências das suas personagens, o que, na verdade, é um traço marcante de toda a obra de Clarice.

Menina x mulher

Em “Preciosidade” esse olhar traz um momento de transição entre menina e mulher, o que se torna ainda mais delicado por acontecer com alguém que se volta totalmente para a sua interioridade para compensar a aparência “feia” e, por isso, a noção de tempo que transcorre (de transição ou transformação) coloca-se como fundamental para a compressão do conto. Por mais que tentasse se proteger do mundo, Ela não poderia fugir das mudanças que aproximação da chegada dos seus 16 anos lhe trazia.

“O que a poupava é que os homens não a viam. Embora alguma coisa nela, à medida que dezesseis anos se aproximava em fumaça e calor, alguma coisa estivesse intensamente surpreendida – e isso surpreendesse alguns homens”.

Além do já colocado sobre o tempo que passa, é preciso destacar outros pontos fundamentais para a compreensão do significado dessa categoria no conto de Clarice Lispector, cujo enredo configura justamente a rotina da personagem, que poderia ser resumida como a sua saída de casa para a escola. Nesse contexto, percebe-se que, de um lado, encontramos o tempo cronológico demarcando as etapas do dia-a-dia da estudante e do outro a tensão psicológica que esses momentos representam para a menina-mulher.

Ao voltar-se em demasia para a sua interioridade, a personagem demonstra na verdade um ponto de desequilíbrio da sua subjetividade, em relação ao temido mundo exterior.

Assim sendo, em cada momento do seu dia, ao sentir-se mais ou menos protegida, Ela estabelecia uma relação diferenciada com o tempo. Quando se voltava para dentro de si, para o que tinha de precioso, a estudante demorava-se: “De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada. O que era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos”. Quando, ao contrário disso, sentia-se ameaçada (ou quando tinha que fazer algo de não gostava), apressava-se: “Vestia-se correndo, mentia para si mesma que não havia tempo para tomar banho”.

O momento do despertar da personagem é bem demarcado no conto e será decisivo para que o contato com o “outro”, do qual falaremos melhor, aconteça. Como para chegar à escola ela pegava um ônibus e um bonde, era preciso que acordasse de madrugada, antes de todos. Depois do seu momento inicial de contato com o seu interior, Ela saía de casa para a escola, em um percurso que demorava uma hora, o que, por outro lado, já se sentindo segura por não ter sido “olhada” por ninguém, significava para a personagem um momento de entrega à sua interioridade, “uma hora de devaneio agudo como um crime”.

O caminhar da estudante até a escola mais se assemelhava a um tipo de marcha, o que se torna claro quando observamos, no âmbito do discurso, o emprego de vários vocábulos ligados ao campo semântico da guerra, como quando o narrador nos diz: “Depois, com o andar de soldado, atravessava – incólume – o Largo da Lapa, onde era dia. A essa altura a batalha estava quase ganha”. Sem dúvida, era preciso que Ela mantivesse o seu ritmo em cada etapa do seu percurso e que nada lhe fugisse do controle.

No percurso da menina até a escola havia um momento crítico, que também é exemplar para demostrar como a personagem vivenciava o tempo de formas diferentes, sentindo-se mais ou menos protegida. Trata-se da sua chegada à escola, onde ela precisava atravessar um longo corredor com “sapatos duráveis” de tacos ruidosos, definidos pelo narrador como sendo “sapatos com dança própria”, ou seja, objetos que não respeitavam o ritmo da menina e sim o próprio.

O fato dos sapatos da menina serem barulhentos era para ela apavorante porque alertava a todos os seus colegas do corredor sobre a sua presença. Se em termos cronológicos eram poucos os instantes que a personagem levava para atravessar aquele corredor, psicologicamente o tempo era interminável: “Rompia o próprio silêncio com tacos de madeira. Se o corredor demorasse um pouco mais, ela como que esqueceria o seu destino e correria com as mãos tapando os ouvidos”.

Para compensar o pavor sentido por denunciar a si mesma, a menina, contudo, tentava manter o seu próprio ritmo e reforçava a sua postura de intocável: “atravessava o corredor interminável como a um silêncio de trincheira, e no seu rosto havia algo de feroz – e soberbo também, por causa da sua sombra – que ninguém lhe dizia nada. Proibitiva, ela os impedia de pensar”.

O comportamento da estudante na sala de aula, por ser surpreendente, também é bastante relevante para a compreensão do conto, já que ao invés de manter-se em silêncio, como se fosse apenas uma sombra, a personagem passa a exibir a própria inteligência, ainda que com o mesmo objetivo de afastar qualquer tentativa de aproximação dos colegas. Naquele ambiente, Ela sentia que o tempo era-lhe favorável, pois lá deixava de se sentir alguém ameaçado pelo mundo masculino, já que “era tratada como um rapaz”.

Até que, enfim, a classe de aula. Onde de repente tudo se tornava sem importância e mais rápido e leve, onde seu rosto tinha algumas sardas, os cabelos caíam nos olhos, e onde ela era tratada como um rapaz. Onde era inteligente. A astuciosa profissão. Parecia ter estudado em casa. Sua curiosidade informava-lhe mais que respostas. Adivinhava, sentindo na boca o gosto cítrico das dores heroicas, adivinha a repulsão fascinada que sua cabeça pensante criava nos colegas, que, de novo, não sabiam como comentá-la. Cada vez mais a grande fingida se tornava inteligente. Aprendera a pensar. O sacrifício necessário: assim “ninguém tinha coragem”. (LF, p. 85).

O contato e a transformação

“Mas errara os minutos: saíra de casa antes que a estrela e dois homens tivessem tempo de sumir”. O tempo cronológico é tão significativo em “Preciosidade” que a grande transformação pela qual a personagem principal do conto passa, com a perda da sua preciosidade, é consequência da alteração da sua rotina, que funcionava como uma espécie de escudo contra o temido contato com o “outro”.

O adiantamento da hora de sua saída de casa teve por consequência o que Ela mais temia: o encontro com dois rapazes que cruzaram o seu caminho e a tocaram. A personagem ainda teve a chance de recuar diante do perigo, mas para Ela a ideia de manter seu ritmo era a sua base de sustentação, pois sem isso se sentiria totalmente sem rumo. “Por um instante hesitou toda, perdida de um rumo. Mas era tarde demais para recuar. Só não seria tarde demais se corresse. Mas correr seria como errar todos os passos, e perder o ritmo que ainda a sustentava, o ritmo que era o seu único talismã”.

O contato com o “outro” configura-se então no conto como o destino da personagem, como algo necessário para que a transformação de menina em mulher se concretizasse. Mesmo seguindo o seu ritmo “espanhol” e mantendo o seu olhar duro, Ela não pôde manter o seu isolamento sendo, finalmente, tocada:

O que se seguiu foram quatro mãos difíceis, foram quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia fazer no mundo dos movimentos: ficou paralisada.

A imagem da personagem paralisada diante do contato coloca-se como contraponto da ideia de ritmo inalterável que ela tanto tentara preservar. No instante em que é tocada, o tempo para, e a menina perde totalmente o controle da situação, transformando o seu choque em imobilidade. O toque, que dura cronologicamente apenas uma fração de segundos, para Ela significa o início de uma mudança inevitável: “Foi menos de uma fração de segundos na rua tranquila. Em uma fração de segundos a tocaram como se a eles coubessem todos os sete mistérios. Que ela conservou todos e mais larva se tornou, e mais sete anos de atraso”.

Tocada, Ela tem como única reação o não mover-se. Nesse momento, assim como no caso dos seus sapatos no corredor da escola, seu ritmo torna-se secundário e que se coloca é o ritmo do “outro” metaforizado pelo barulho assustado do sapato dos rapazes que levaram a sua preciosidade.

A partir do momento do contato, percebe-se que a aparente segurança que o ritmo próprio conferia a personagem deixa de existir. Tudo para Ela está agora fora de controle e sem sentido. Com muito esforço, a personagem volta a se movimentar, mas parece que a partir dali o seu ritual não tem mais nenhum significado, não existe mais a sua rotina autoprotetora, o que fica claro quando a estudante chega e escola com duas horas de atraso, o que seria inadmissível no âmbito da sua rotina militar.

“Como não tinha pensando em nada, não sabia que o tempo decorrera. Pela presença do professor de Latim constatou com surpresa polida que na classe já havia começado a terceira aula”.

O total descontrole da personagem diante do contato confere, finalmente, o status de “pessoa” a um alguém que antes se sentia como um tipo de ser que deveria ser venerado, que estaria mais próxima do mundo impessoal dos deuses. Fora de si, a personagem sai do mundo interior que tanto resguardara e exterioriza a sua dor: “‘Uma pessoa não é nada. Não, retrucou-se em mole protesto, ‘não diga isso’, pensou com bondade e melancolia. ‘uma pessoa é alguma coisa’, disse por gentileza”.

Portanto, colando-se em contato com o mundo dos humanos, a personagem conclui o seu processo de transformação e passa a se sentir uma mulher que aceita mudanças e não se esconde no que é permanente e durável, como eram os seus sapatos. “Preciso de sapatos novos! Os meus fazem muito barulho, uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muito atenção!”. Assim, Ela deixou de ser preciosa, rompeu a casca do ovo e nasceu para o mundo.

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