A abordagem documental autobiográfica data dos anos 1970 com a produção pouco conhecida do estadunidense Ed Pincus, no limiar da década de 1970, quando o documentarista realiza ‘Diaries:1971-1976’, um filme de memória sobre o próprio Ed, sua mulher Jane, seus dois filhos e suas as relações extraconjugais. O curioso é que, embora seus diários tenham sido filmados no período que dá título ao filme, seu lançamento só ocorreu no início dos anos 1980, quando o pesquisador Bill Nichols identifica o surgimento desse tipo de documentários sem, no entanto, citar Ed Pincus.
A Paraíba, até que se prove o contrário, talvez seja a pioneira no Brasil com essa forma de representação do real com o curta ‘Sagrada Família’ (Everaldo Vasconcelos, 1981), que inaugura o documentário autobiográfico no cinema documental paraibano e, muito provavelmente, na produção de não ficção brasileira. O diretor dirige a câmera para a sua própria família, com ênfase no pai (que faz um balanço melancólico de sua vida e seus problemas com o álcool) e sua avó que dá num depoimento comovente para o curta-metragem. Um mergulho corajoso e tocante no universo pessoal do cineasta.
Sempre fico com um pé atrás quando me deparo com documentários autobiográficos (ou “performáticos” na tipologia de Bill Nichols). Em quase um século de representação do mundo histórico, a partir de ‘Nanook, o esquimó’ (Robert Flaherty, 1922), os documentaristas investiram na busca de diferentes modalidades de abordagem em suas obras, articulando os materiais de expressão (imagem, ruídos, menções escritas, diálogos e música) à disposição do cinema para construir narrativas acerca do real.
Num contexto de alta exposição da vida privada nas redes sociais, toda desconfiança é justificada. ‘Bem vindos de novo’ (2021, 105min), dirigido por Marcos Yoshi, em cartaz no Cine Banguê do Espaço Cultural, retrata o drama de uma família na busca de reatar laços afetivos depois de 13 anos de ausência. Os pais, Yayoko e Roberto Yoshisaki, de uma segunda geração de descendentes de japoneses, decidem deixar o Brasil e fazer o caminho imigratório inverso dos parentes em busca de melhoria de vida. O que era para ser uma aventura de dois anos terminou numa longa ausência e separação dos três filhos crianças (entre elas o diretor Yoshi), que ficaram sob os cuidados dos avós.
Marcos Yoshi, um sansei de terceira geração de descendentes, se graduou e se tornou mestre em cinema com uma dissertação sobre o cinema autobiográfico, em 2018, e dois anos depois deu início a um doutoramento. O que difere este documentário autobiográfico de uma leva de obras congêneres que pipocaram nas últimas duas décadas é a percepção de que ele emerge de uma necessidade pessoal, e premente, do realizador. A dor, e por que não, o ressentimento, pela partida dos pais, por tanto tempo ausente num momento tão importante na vida das três crianças. Numa das falas da mãe Yayoko, ela revela que não reconhecia mais os filhos.
Alguns documentários autobiográficos fizeram história da cinematografia brasileira pela contundência e criatividade da sua narrativa, a exemplo de ‘33’ (Kiko Goifman, 2004), ‘Diário de uma Busca’ (Flávia Castro, 2010) e ‘Meu nome é Daniel (Daniel Gonçalves, 2018), e também por tratarem de temas muito caros aos diretores-personagens. É o caso de ‘Bem vindos de novo’ que transpira sinceridade e, como fala Yoshi em determinado momento do filme, narrar essa história familiar foi uma forma de se reaproximar dos pais e entender seus motivos.
Yoshi constrói sua narrativa tecendo memórias, a das duas irmãs, dos pais e as dele mesmo, costurando com momentos prosaicos da vida cotidiana famíliar, pequenos conflitos entre o pai e a mãe, a frustrada parceria num restaurante onde trabalham, o nascimento da neta – evento que une toda a família; e, imaginem, a decisão dos pais de novamente voltarem a viver no Japão. ‘Bem vindos de novo’ nos cativa pelo despojamento e autenticidade da direção e da performance dos seus atores sociais.