‘Um filme de policiais’ (México, 2021, 1h47), documentário da Netflix, expande os limites da criação do gênero ao mergulhar nas entranhas da instituição policial na Cidade do México, através do casal Teresa e Montoya (“ patrulha do amor”). A fruição de um filme pelo espectador se dá pelo que lhe é comum, isto é, pelo que espera de uma narrativa, mas também pelas surpresas que ela oferece. Neste filme de Alonso de Ruizpalacios, que assina o roteiro com David Gaitán, o que nos surpreende não são as reviravoltas do enredo como numa ficção, mas as criativas estratégias de abordagem empregadas pela direção para falar de um aspecto do real.
Não há como fugir da expressão ‘jogo de cena’, que dá nome à obra-prima do documentarista Eduardo Coutinho de 2007, como citou o crítico Carlos Alberto Mattos no título da sua cirúrgica análise sobre o filme de Ruizpalacios: ‘Jogo de cena com a polícia mexicana’ (https://carmattos.com). No doc de Coutinho, mulheres contam histórias reais e algumas atrizes, desconhecidas e célebres, interpretam esses depoimentos confundindo o espectador. ‘Um filme de policiais’ é indexado como documentário, o que nos faz apreender toda a sua sequência inicial como uma estética observacional, iniciada pelos anglo-saxões, onde cineasta e equipe buscam uma não-interferência na cena, registrando os acontecimentos respeitando seu fluxo real.
Este tratamento observacional, adotado pelo cinema direto dos estadunidenses Robert Drew (‘Primárias’, 1960) e os irmãos Albert e David Maysles (‘O caixeiro viajante’, 1969), entre outros, é trabalhado em diversos momentos do documentário de Ruizpalacios. No entanto, nada é como parece. ‘Um filme de policiais’ nos surpreende a cada nova sequência com mudanças na sua forma de abordagem. Passamos a ouvir depoimentos dos personagens Teresa e Montoya, ora em voz over, ora em som sincrônico, encarando ou não a câmera, mas claramente falando para alguém (o diretor e sua equipe) em diferentes cenários.
A inventividade da narrativa documental de Ruizpalacios não pára por aí. Ele vai lançar mão de outros recursos e processos, alguns construídos anteriormente às filmagens, como a imersão da atriz Mónica de Carmén (Teresa) e do ator Raul Briones (Montoya) numa intensiva formação de três meses em academias de polícia, onde seguiram agentes em suas rondas e ensaiaram para interpretar Teresa e Montoya, gravando, neste ínterim, suas observações em celular e que entraram na narrativa do filme.
O diretor, através dos personagens Teresa e Montoya interpretados pelos atores Carmén e Briones, mas também com a participação dos dois atores sociais que viveram na vida real essa história e cujas falas serviram de base para os ensaios dos primeiros, nos conduz ao drama de ser policial num país onde a violência e a corrupção estão institucionalizadas. Uma realidade tão próxima da nossa que não há como terminar as quase duas horas de narrativa sem o sentimento de impotência experienciado pelos protagonistas. E aqui fecho com Carlos Alberto Mattos: “circulando de um gênero a outro, essa obra é tão fascinante quanto inclassificável.” ‘Um filme de policiais’ recebeu o prêmio de Melhor Contribuição Artística do Festival de Cinema de Berlim.
