Carlos Ruiz

Carlos Enrique Ruiz Ferreira é mestre e doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP; pós doutor pelo Departamento de Filosofia da USP; professor doutor associado de Relações Internacionais da UEPB. Atualmente é coordenador geral do Centro de Estudos Avançados em Políticas Públicas e Governança (CEAPPG) e coordenador do curso de Relações Internacionais da UEPB
Carlos Ruiz

Um outro Ensino Médio é possível

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Seria na verdade uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica.

Paulo Freire, A ação cultural para a liberdade e outros escritos.

Não podemos olvidar que a Lei do Ensino Médio (13.415/2017) foi uma das primeiras Medidas Provisórias do governo golpista de Michel Temer. Atente-se: a agenda neoliberal e golpista engendrou como um de seus primeiros atos a privatização da Petrobrás e o desenho de uma nova política educacional. A BNCC (Res nº 4/2018 do CNE), por seu turno, também foi aprovada nesse governo, em seu apagar das luzes. Trata-se de um mesmo pacote.

O problema é que o tema contempla maior complexidade do que se presume, pois existem elementos que podem ser considerarados como positivos, como por exemplo: a proposta de um paradigma interdisciplinar que norteie o currículo, procurando estabelecer diálogos profícuos entre áreas e disciplinas, conseguindo romper certos muros epistemológicos. A ideia dos itinerários formativos também não é de se jogar fora (a depender de como usada), mas não cabe num Brasil onde as alunas e alunos sofrem com a fome, desnutrição e insegurança alimentar, e, registre-se, onde infraestrutura é precária demais (estamos falando de problemas tão elementares como o saneamento básico e banheiros), piorando com as desigualdades regionais.

Mas os pontos que poderiam ser positivos (há outros) se diluem por completo quando passamos à análise do “sistema”, do “conceito”, da “filosofia” proposta. O Novo Ensino Médio (NEM) possui forte caráter tecnicista, frágil do ponto de vista da formação para dos direitos humanos e cidadania, cumprindo uma agenda que retifica a desigualdade social. O conceito central está na cisão de classes: a uma elite se reserva o poder de mando e para os “outros” resta a obediência. Uns ficam/permanecem na Casa Grande e os outros na eterna Senzala. E é curioso como parte do governo ainda não o bem compreendeu.

Num certo sentido, essa proposta não revela nada de novo. O que a diferencia dos primeiros pensamentos e experiências de Ensino Superior no Brasil, é sua readequação histórica e alguns novos personagens do Capital (empresas e fundações que concebem a educação como um negócio e a pujança do Ensino à Distância). Apresenta-se uma miríade de novas nomenclaturas e redesenha-se o organograma disciplinar e curricular para atender as demandas de uma sociedade de privilégios e exclusão, direcionando a educação pública para uma formação tecnicista, desprovida de capacidade crítica, de reflexão e mesmo de cidadania. Contra esse modelo se insurgiram grandes nomes da educação nacional e da filosofia, como Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Marilena Chauí, que inspiram não apenas a militância, mas o pensamento e a prática petista.

A batalha hoje é clara, se a Casa Grande e os neoliberais não conseguem mudar a Constituição, derrubando os direitos econômicos e sociais, então eles agem pelo caminho mais estrutural: a educação. Querem, nada mais nada menos, que: a) formar pessoas com baixo grau de instrução nas ciências humanas (à exemplo da retirada das disciplinas de sociologia e filosofia); b) aptas a realizar trabalhos de menor remuneração e, muitas vezes, precarizados, e; c) que sejam ao mesmo tempo partícipes (conscientes ou inconscientes) desse sistema violento que se diz cordial. O NEM, portanto, nada mais é do que um “poder disciplinar” (M. Foucault) que procura normalizar a violência – econômica, social, política, cultural – existente. Um projeto em que a meritocracia dita a norma, a partir do “projeto de vida”, defendendo a (pseudo)lógica de que o pobre é pobre porque quer ou porque simplesmente assim tem que ser. Voltando a Foucault, poderíamos dizer que o NEM objetiva produzir “corpos dóceis”, uteis economicamente e dóceis na obediência e adaptação ao sistema. Enquanto a elite aprende a fazer/pensar, os “outros” devem ser restringir a fazer/reproduzir.

O Ensino Médio que queremos é outro. É aquele que, em primeiro lugar, busque cumprir sua função de formar para a consciência crítica e reflexiva, para cidadania e democracia (tal como se preceitua na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996). Já disse em outro momento que mesmo com a mais eficiente reforma agrária que se possa executar, com o maior e melhor programa de redistribuição de renda desse país, com a mais atilada política de combate à fome, com uma reforma tributária justa etc., tudo isso de nada valerá se não tivermos um povo cônscio de seus direitos e deveres, de sua cidadania. Sem uma Educação e Formação política-cidadã tudo o que é sólido se desmanchará no ar em algum momento, com a (re)emergência do pensamento fascista. É só pela Educação que se constrói uma Sociedade Democrática e se combate o pensamento fascista, autoritário, machista e patriarcal, racista, LGBTQIA+fóbico, e assim por diante. Ou esse se torna nosso mantra central… ou seguiremos numa nau sem rumo certo.

O Ensino Médio que queremos é o da defesa e valorização do Magistério. Já passou da hora de falarmos em um piso nacional para docentes de todos os níveis, equiparado ou muito próximo ao salário de um professor de Universidade Federal. Passou da hora de valorizarmos devidamente os professores/as da Educação Infantil, Fundamental e Médio, compreendendo a Educação como um sistema complexo e interdependente, buscando romper os muros de diversos tipos que ainda persistem.

O Ensino Médio que queremos é aquele em que não haja uma sequer escola desse Brasil sem saneamento básico, uma escola sequer sem banheiro (de acordo com dados do Censo Escolar 2020 eram mais de 4 mil escolas no país sem banheiro, mais de 3 mil sem abastecimento de água e mais de 8 mil sem água potável). Como falar de itinerários formativos e as múltiplas escolhas dos alunos (e seu protagonismo juvenil) se ainda muitas de nossas escolas não possuem condições mínimas para se exercer o processo de ensino/aprendizagem?

Há muitas outras questões que merecem nossa atenção e devem ser pensadas pelo poder público para o bom empreendimento de políticas públicas educacionais, com a definições de prioridades e cronograma de execução. O momento não poderia ser mais propício para um reexame sério, científico e ao mesmo tempo político, do Ensino Médio e de seu papel na Educação Nacional e na Sociedade Democrática.

O debate do Novo Ensino Médio é urgente em pelo menos dois sentidos. Primeiro, e já mencionei a questão aqui (e tenho realizado alguns vídeos sobre o tema: https://www.youtube.com/@carlosenriqueruizferreira4335), o debate é imperativo no âmbito curricular e conceitual. Afinal, queremos uma educação para a cidadania, para a democracia, para a diminuição dos abismos sociais existentes? Ou queremos uma educação cindida, sendo uma para formar a elite e sua perpetuação nos espaços de poder e privilégios e a outra para formar corpos dóceis, uteis economicamente e acríticos socialmente?

Em segundo lugar, o debate sobre o Ensino Médio nos ensina que não há sentido debater currículo e conceito se não iniciarmos uma reforma mais profunda na Educação, começando pela valorização das professoras e professores desde a creche, Ensino Infantil, até o Ensino Médio. A infraestrutura das escolas públicas é outra prioridade. Ou seja, pensar o Ensino Médio no quadro geral do Sistema Nacional de Educação.

Por exemplo, estabelecer um diálogo entre docentes do Ensino Superior e do Médio é um desafio necessário para se criar sinergias e metas comuns. Não é atilado pensar uma proposta de Ensino Médio que não esteja em sintonia, pari passu, com uma possível reforma nas Licenciaturas (dando lugar ao sol à Formação e Qualificação Docente para a vida, permanente e continuada). O Novo Ensino Médio cometeu o erro fatal de não ter sido feito em diálogo com as Licenciaturas. Como mudar um sem o outro? Contrassenso puro, erro primário.

A sociedade civil organizada, associações e sindicatos de docentes e profissionais da educação, o movimento estudantil em peso (representados pela UNE e UBES), todos estão clamando pelo reexame profundo ou a própria revogação da fadada Lei no Ensino Médio e seu filho menor, a BNCC. A hora é de uma nova construção teórica, metodológica e participativa. Um outro ensino médio é possível!

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