Uma vez, caminhando no meio do mato, eu pisei na asa de um passarinho.
O bichinho estava no chão, que, definitivamente, não é onde se espera que um pássaro esteja.
Devia já estar ferido e pisei numa de suas asas.
Fiquei me sentindo tão mal…
Parecia que tinha pisado na asa de um anjo.
Por um momento, permaneci ali, parado, olhando pra ele, sem saber o que fazer.
Ainda vivia. Eu o levei pra casa e fiz o que minha vó materna me ensinou, quando se precisava ressuscitar um bichinho recém morrido: botei ele embaixo de uma bacia de metal emborcada e bati nela com um pedaço de pau. Aquele barulhão certamente fortaleceria os batimentos do coraçãozinho de ave.
Não adiantou.
O passarinho morreu.
Durante uma semana me senti a mais amaldiçoada das criaturas.
Sofri calado, meu peito de menino apertado de tristeza e medo.
Quando você é menino, um passarinho é um ser mágico, encantado, capaz de realizar coisas incríveis como voar, mudar de cor e cantar numa língua misteriosa, que só pessoas especiais conseguem entender.
E eu tinha que ter pisado justo na asa de um desses seres!
Toda noite, naquela semana, ia dormir apavorado, esperando que uma coisa estranha acontecesse comigo, como castigo pelo meu descuido.
Acordaria transformado numa minhoca, e nem meus pais me reconheceriam. Então seria dado de comer às galinhas. Viraria, eu mesmo, um pássaro com asas machucadas, e não conseguiria escapar de um gato que me perseguiria implacável. E, o pior de todos os castigos, meu anjo da guarda me daria as costas, com as mesmas asas partidas…
Nunca falei nada pra ninguém.
Enterrei o passarinho no quintal e enfiei uma pequena cruz de madeira, feita por mim, no local.
Fiz isso tudo bem escondidinho, pra que nenhum adulto soubesse do meu crime involuntário. E olhe que eu nem sabia o que era ocultação de cadáver!
Rezei um Santo Anjo no pequeno túmulo, a única oração que eu sabia inteira, e me tranquei no meu quarto.
Só saía pra comer.
Os adultos nem notaram.
Os dias foram se passando e eu não virei minhoca, nem pássaro ferido. Aí tive um sonho: eu pisava nas asas de um pássaro, só que ele estava voando. Então eu estava voando também. Equilibrado naquelas asas, nós dois riamos muito alto, o pássaro e eu. E mesmo quando ele voava de cabeça pra baixo, eu não caía. Nem tinha medo.
Passei muito tempo pensando naquilo.
Aquele passarinho foi se transformando numa metáfora dos mistérios da vida e da morte. Da culpa e do medo. Da sorte, do acaso.
Caminhando no mato, eu podia ter pisado numa formiga, numa aranha, numa cobra, sei lá…
Mas eu pisei num passarinho.
Jamais esqueci desse momento mágico e assustador, onde um pequeno anjo de penas cinzentas e amarelas, durante uma semana, me ensinou sobre o inferno e o céu.
Nunca mais tive medo.
Não da morte.
Da vida tampouco.
Na vida, a gente é tudo passarinho, não é mesmo?
Mesmo de asas machucadas.
E, seja qual for a altura do vôo, eu passarei, tu passarinharás, eles passarão.*
*Obrigado, Quintana!