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Spike Lee atualiza a discussão sobre racismo a partir da Guerra do Vietnam

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Destacamento Blood, o novo filme de Spike Lee, traz, como em toda sua obra, os problemas raciais nos Estados Unidos. Desta vez, o diretor leva seus personagens ao Vietnam de hoje e o dos anos do conflito, demarcando nitidamente com o tipo de janela na fotografia do filme os dois períodos. O atual, no formato widescreen, e o período dos anos 1960/1970 no padrão 4 x 3 (“janela clássica”), como era comum na tela da televisão e nos filmes exibidos no cinema nessas décadas e nas seguintes. Disponível na Netflix, Destacamento Blood é um filme de 2020 e mexe na ferida que continua sangrando na pele negra dos afrodescendentes, não só da América do Norte, mas do mundo inteiro.

A tese que perpassa ao longo da narrativa é de que a população negra foi usada como bucha de canhão na chamada Guerra do Vietnam como ficou conhecida no Ocidente (para os vietnamitas, era uma Guerra de Resistência contra a América). A população negra dos Estados Unidos no período mais intenso da guerra era de aproximadamente 11%, no entanto, do total dos soldados enviados à guerra, mais de 30% era de afro-americanos. Oficialmente, esta guerra, que envolveu também Laos e Camboja, durou 20 anos, com uma atuação massiva dos Estados Unidos a partir de 1965, culminando em 1975 com a tomada de Saigon pelos comunistas e uma estrondosa derrota para a política imperialista norte-americana.

O enredo de Destacamento Blood versa sobre a história de quatro veteranos estadunidenses voltando ao Vietnam nos tempos de hoje para resgatar o corpo de “Stormin’ Norm” (Chadwick Boseman), um velho companheiro do destacamento Blood. A missão humanitária, contudo, não é o propósito principal dos amigos. Uma carga de ouro valiosa também aguarda resgate e vai figurar o conflito que moverá a narrativa e suas tensões, que, diga-se de passagem, não são poucas. O filme começa com imagens de arquivo sobre personagens ilustres da luta pelos direitos civis da população afro-americana e da própria guerra, a exemplo de Mohammad Ali, Martin Luther King, Malcom X, Angela Davis e outras referências do ativismo negro. Imagens documentais emblemáticas que irão contextualizando, e “comentando”, a narrativa até o seu final.

Os quatros sobreviventes do destacamento Blood – Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters) Eddie (Norm Lews) e Melvin (Isiah Whitlock Jr) – chegam a Ho Chi Minh (antiga Saigon, capital do então Vietnam do Sul) e logo seremos apresentados às idiossincrasias da cada personagem, que redundarão numa difícil convivência. Eles não escondem o orgulho de serem “Blood”. Uma cena irônica e, igualmente melancólica, dessa contradição se dá num bar onde o grupo se encontra reunido na primeira noite de sua chegada. Um adolescente pedinte se dirige a eles. Ele usa muletas e tem uma perna amputada, seguramente pelas minas espalhadas nos campos do Vietnam do Sul pelos norte-americanos, e que ainda hoje fazem estragos na população civil.

Quando lança mão de imagens, fotos ou filmes documentais, Spike Lee optou por uma montagem comum nos documentários e no jornalismo (a “montagem de evidência”), onde falas são atestadas por imagens, comprovando o que é falado pelos personagens. Tal recurso imprime uma estética documental à sua narrativa ficcional. Nesses tempos de inflação de informações e fake news, parece uma estratégia pedagogicamente eficaz. Para um público iniciado, pode parecer um recurso desnecessário. O diretor, conhecido pela abordagem contundente do racismo em seus filmes, continua aqui com sua verve ácida e irônica sobretudo nos diálogos.

Quando da negociação do grupo com o senhor Desroche (Jean Reno), francês que fará a “conversão” das barras de ouro em dinheiro vivo para que possa sair clandestinamente do país, Paul faz um discurso ufanista em defesa da atuação dos EUA na Segunda Grande Guerra. Ao que Desroche retruca: “Agradeço por sua versão americana ignorante e unilateral da Segunda Guerra.” As diferentes visões dos personagens da Guerra do Vietnam estão sempre em conflito, mesmo entre os veteranos. O ouro em questão foi enviado pelo governo norte-americano para pagar os nativos vietnamitas por lutarem contra os vietcongues, mas a aeronave foi abatida e a carga enterrada para um futuro resgate pelo “destacamento blood”. Aqui Norman (ou Norm, o soldado que não retornará à pátria) faz um discurso incisivo sobre a escravidão e a opressão branca infligida à população negra ao longo dos séculos no seu país: “Vamos tomar esse ouro em nome de cada soldado negro que não sobreviveu.” Era o Malcom X e o Martin Luther King do grupo com plena consciência de sua posição de oprimido.

A narrativa de Destacamento Blood é constantemente alternada entre a atuação do grupo durante os combates em 1968, embalado em alguns momentos pela música e comentários da “Voz do Vietnam”, e a busca do corpo e resgate do ouro, no tempo presente. A bela locutora vietnamita, num claro inglês, informa aos soldados o assassinato de Luther King e dos distúrbios raciais decorrentes, insuflando os soldados negros a desistirem da luta na selva para se juntarem aos irmãos massacrados em seu próprio país.

O discurso político, fortemente presente na primeira metade do filme, arrefece e dá lugar à ação, tipicamente dos filmes de aventura e suspense, em suma, ao espetáculo). Encontrados os restos mortais de Norm e as barras de ouro, o conflito é focado agora na luta entre o grupo de veteranos e mercenários vietnamitas, liderados por Desroche, pela posse do ouro. Ah, em tempo, uma organização humanitária, que trabalha no desmonte de minas, é envolvida no imbróglio temperando o conflito entre os veteranos do grupo com desconfianças e paranoias. Em diversos momentos, a possibilidade de uma dessas minas serem acionadas por acidente contribui para uma boa parte do suspense. A partir daí, como em qualquer thriller, a pergunta é: nossos heróis conseguem ou não sair do país com o ouro?

A impressão que temos é de que assistimos a dois filmes diferentes. Um filme de um Spike Lee contundente com escancarando questões raciais e pacifistas e, um outro de um diretor qualquer, que narra com destreza uma aventura cheia de reviravoltas e suspense, mesmo que em alguns raros momentos questões políticas explodam nas falas dos personagens. Nesta segunda parte do filme, Lee recorre a apenas um flashback para narrar a morte acidental de Norm, um trauma que tanto atormenta Paul em seus sonhos. Num delírio de Paul, os dois se reconciliam. E pela primeira vez, o ufanista Paul confessa, ao ser capturado por milicianos vietnamitas, que lutaram numa guerra imoral que não era deles, a dos soldados negros. E que “vidas negras importam”. Estas são as grandes questões do filme. No entanto, Spike Lee vacila ao simplificar e espetacularizar o tema na segunda metade do filme.

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