A minha vizinha pegou covid. Entre a dor e glória de estar sozinha, no casulo por dez dias, ela experimentou sensações que passeiam entre sentimentos de solidão e solitude. Vacinada com três doses, a doença chegou no formato mais leve, permitindo-a vivenciar também momentos de solitude, quando o estar só abre frestas à imensidão de bons pensamentos, experimentos e, pasme, ao sabor de liberdade, mesmo à porta fechada.
Um pouco viciada em leituras, principalmente contos e crônicas, ela recorreu à escrita de Clarice Lispector. A escritora acena com olhares de profunda sensibilidade e introspecção ao falar das dores e delícias de estar só. Parece até uma constante estranheza em relação a si e ao universo, espécie de não pertencimento aos lugares e relacionamentos.
Muitas das doses de solidão, vivenciadas durante a covid, são nada espontâneas, claro… Aquele encapsulamento costuma ser terrível no cotidiano das pessoas, a despeito de apenas por sete, dez ou quinze dias. Nunca sabemos o tamanho dessa conta, porque os protocolos parecem mudar a toda hora, igualzinho os pensamentos de quem depara-se com um amanhecer bastante atrasado, porque a madrugada fora longa demais.
Falante e querida, a vizinha testou a solidão da noite, tão professada por poetas e músicos. ‘Por que a da noite?’, indaguei-a. De pronto, respondeu com versos de Lispector: “Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão”. Ao retornar para si e partir do interior clariceano, narrou a visão de uma estrela cadente, quando se tem a impressão de que a vista só alcançou algo depois que esse objeto desapareceu.
‘Seria então a liberdade o tal objeto de desejo?’, perguntei-a, como quem nada quer. E ouvi então relatos acerca das descobertas afloradas durante uma chamada solitude, termo poético que diz muito dos sonhos e necessidades de cada um. Revela a satisfação de deleitar-se com a própria companhia, durante poucas ou muitas horas.
Traduz a alegria de encontrar paz, aconchego à alma e momentos de felicidade também sozinho. A plenitude de compreender que estar só pode ser prazeroso e encantador. Até mesmo dentro de um minúsculo quarto. Imagina com a liberdade de ir e vir… Escolher o que mais gosta de fazer, sem tantas amarras e temores.
Vale caminhar à beira-mar, ir ao cinema, sair para jantar, dançar no escuro, cantar no chuveiro, viajar, ler um livro, assistir a um filme, fazer atividade física, sonhar acordada e dar risadas, degustar uma taça de vinho… Infinidade de coisas que não dependem de ninguém para acontecer, senão da própria pessoa e seu estilo de vida. Eis os segredos e maravilhas de uma solitude bem desfrutada.
Claro que a solidão, sentimento tão presente na existência humana, belo dia baterá à porta, com ares de amargura e desesperança. Dela ninguém fugirá, inclusive na presença de multidões ou simplesmente a dois. De repente, aquela mulher aparentemente tão bem acompanhada, amarga oceano de solidão. Enquanto um “eu” sozinho, na reclusão do quarto ou mundo afora, desbrava sonhos adormecidos.
São apenas lampejos de pensamentos compartilhados entre duas vizinhas, antes de se despedirem, com promessas de um novo encontro. Afinal, são poucos andares entre a solidão e solitude de seres humanos, embevecidos pela alegria de viver, mas também com o desafio diário de fazer com que uma certa glória íntima não se torne dor, como ensinou Clarice Lispector.
