“Retirem os bombeiros, as equipes de preservação e os recursos de manutenção que a coisa queima sozinha”, desabafou, consternado, meu amigo pesquisador Rafael Zanatto, que uso como uma espécie de prólogo para a minha coluna desta semana, com o sinistro incêndio da Cinemateca Brasileira (Unidade da Vila Leopoldina) nesta quinta, 29. Estava pronto para escrever sobre o delicado filme japonês ‘Mães de Verdade’ (Naomi Kawase, 2020), lançado em diversas plataformas este mês, porém, com mais um crime contra a cultura brasileira, não poderia deixar se registrar essa fala de enfurecimento. O título da coluna poderia ser ‘Fascistas de verdade’.
A montagem de um filme tem início na escrita do roteiro, continua na filmagem e tem sua versão definitiva numa ilha de edição. O enredo macabro da tentativa de destruição da cultura brasileira, ora em cartaz permanente no governo nazifascista de Jair Bolsonaro, teve início no golpe que defenestrou Dilma Rousseff da presidência, fruto de “um acordo com o Supremo, com tudo”, do legislativo ao judiciário, passando pela grande mídia e setores ultraconservadores da sociedade brasileira.
Agora, assistimos horrorizados mais um evento dessa sequência de acontecimentos macabros, que mexe com os nervos dos “passivos” espectadores de um filme de terror: a memória do cinema brasileiro arder em chamas. Uma versão tupiniquim de ‘Inferno na Torre’, filme catástrofe hollywoodiano de 1974, dirigido por John Guillermin, onde um inescrupuloso construtor busca se livrar de sua responsabilidade? A história inexoravelmente se repete como um terrível pesadelo. O descaso proposital é o motor desses delitos contra a nossa memória.
A unidade da Vila Leopoldina é uma extensão da Cinemateca Brasileira da Vila Clementino e abriga grande parte do acervo do cinema brasileiro, não só filmes originais, cópias restauradas, como toda sorte de documentos, impressos ou não, que documenta a história do nosso cinema. No ano passado, uma enchente contribuiu para danos significativos no acervo da unidade. Não foi por falta de avisos, diz uma nota dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira em manifesto lançado nessa sexta, dia 30.
Qual a responsabilidade do “empreiteiro” Bolsonaro em relação à cinemateca e seu precioso acervo? No dia 08 de agosto do ano passado, o presidente demitiu todo o seu corpo técnico sem o pagamento dos meses trabalhados e das rescisões de contratos. Há um ano sem as equipes de manutenção e restauração, pode-se imaginar as deteriorações sofridas pelo acervo, sobretudo as películas de nitrato e acetato, facilmente danificáveis e altamente combustíveis. Como expressa a nota dos trabalhadores, “Certos danos são silenciosos, porém tão trágicos quanto um incêndio, e igualmente irrecuperáveis.”
O que continha a unidade sinistrada da Vila Leopoldina? Documentos do Fundo INC – Instituto Nacional de Cinema (1966-1975), parte de arquivos da Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A (1969-1990), do Concine – Conselho Nacional de Cinema (1976-1990), parte do acervo do Tempo Glauber, Filmes da ECA – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), parte do acervo de filmes em 35mm da distribuidora Pandora Filmes, Cinejornais da Atlântida e do Canal 100. Além de objetos, mobiliários e equipamentos de cinema que formavam o museu da entidade.
Esta tentativa de apagamento da memória do país não é por acaso. É uma política de governo. Num governo que vê a arte e a cultura como inimigos não poderia ser diferente. Foi assim no nazismo hitlerista, no fascismo mussoliniano, na ditadura soviética e chinesa e nos estados religiosos fundamentalistas quando, frequentemente, artistas foram perseguidos, livros queimados em praça pública e obras de artes condenadas ao esquecimento. O neonazismo e o fascismo se apoderaram de forma cavilosa do governo Bolsonaro. Personagens esdrúxulas do alto escalão bolsonarista protagonizaram os casos mais escabrosos de incitamento ao preconceito e ao ódio.
Além de responsável, em grande parte, pela morte de mais de meio milhão de brasileiros por conta de sua política estrategicamente genocida, Bolsonaro e seus asseclas têm obcecadamente perseguido cientistas, pensadores e artistas. O cinema tem sofrido com a estagnação de editais, censura e desprezo pelas políticas exitosas dos governos anteriores. Solidarizo-me com os trabalhadores da Cinemateca Brasileira e o que eles preconizam, cujo trecho uso aqui como epílogo: “É preciso estabilidade e garantia de equipe técnica a longo prazo, oferecendo à instituição um orçamento compatível com os necessários serviços de preservação e difusão do audiovisual brasileiro.”