Noutra ocasião discutimos nesta coluna as diferentes formas narrativas no cinema. Retornamos agora para algumas reflexões. Qualquer filme é narrativo? Lembremos que o que alcunhamos de linguagem cinematográfica está consolidada desde meados dos anos 1910 quando D.W. Griffith, ator e roteirista, compilou no seu primeiro longa-metragem (‘Judith de Betúlia’, 1914) quase todos os procedimentos narrativos do cinema, entre eles o close. Não foi Griffith, como acreditam muitos, quem introduziu pela primeira vez esse tipo de plano na narrativa cinematográfica.
Ator e argumentista (os filmes eram tão curtos que ainda não utilizavam roteiro como conhecemos hoje), D.W. Griffith foi contratado por Edwin Porter, em 1907, para sua companhia de cinema. Este sim, foi pioneiro no uso do close no cinema, em 1903, com ‘O grande roubo do trem’ . A diferença entre o uso do recurso pelos dois diretores é que Porter não pensou na sua função dramática dentro da narrativa, mas apenas como uma “provocação” para os espectadores. Observem que nesse plano, o bandido (Justus D. Barnes) olha para câmera e aponta seu revólver disparando-o em direção à plateia. Nos seus dois longas-metragens seguintes ‘Nascimento de uma nação’ (1915) e ‘Intolerância’ (1916), Griffith vai usar o close como poderoso recurso dramático.
Em relação à linguagem cinematográfica, sabemos que o trabalho de direção (a mise-en-scène) – todas as escolhas que o cineasta lança mão para fazer fluir sua história, no sentido mais estrito do termo, ou na elaboração de sua mensagem – é quem vai conduzir a narrativa. Como diz o teórico estadunidense Bordwell, a mise-en-scène (a direção) é o veículo da narrativa. O que entendemos como história é uma sequência de eventos encadeados numa relação de causa e efeito, onde nada acontece por acaso.
Os manuais de roteiro repetem à exaustão que uma boa história bem contada demanda um alguém por quem sentimos empatia e que deseja fortemente algo (um objetivo, uma vontade, um sonho, um problema para resolver, etc) que deve gerar um conflito com forças antagônicas que podem ser da ordem do humano (um grupo social), do não-humano (a natureza, monstros, seres sobrenaturais, etc) e do psicológico (interna à personagem). É esse conflito que funcionará como a argamassa que sustentará o desenvolvimento da história e norteará as ações do herói. Essas exigências fazem parte de uma narrativa que, ordinariamente, denominamos de narrativa clássica e que historicamente está associada ao cinema hollywoodiano.
Bem cedo, ainda nos anos 1920, as chamadas vanguardas artísticas europeias (dadaísmo, surrealismo, impressionismo, etc.) questionaram essa primazia da narrativa como função primordial do cinema. Dificilmente, um filme escapa da narrativa já que trabalha com imagens figurativas que, incontornavelmente, convidam a uma narração. Essas vanguardas tentaram radicalizar em suas propostas cinematográficas. Mas há narrativas e narrativas. E nesse sentido recorro mais uma vez à Robert Mckee e seu design da história no livro ‘Story’ que dá conta das possibilidades da narrativa cinematográfica.
A essa narrativa que denominamos de “narrativa clássica”, Mckee se refere como “arquitrama”, uma história com protagonista único e ativo, universo consistente, final fechado e uma relação de causa e efeito sólida entre os eventos narrados. De forma intermediária, temos uma “minitrama” com protagonista, ou multi-protagonistas, passivo (sem vontade de ação), conflito interno e final aberto. No outro vértice da base da pirâmide, temos a “antitrama” com suas realidades inconstantes, coincidências, tempo não linear, etc. Um bom exemplo dessa última modalidade narrativa está no clássico da Nouvelle Vague ‘Ano passado em Marienbad’ (Alain Resnais, França, 1961).
Um filme que utiliza uma estrutura narrativa da “antitrama” pode ser, para a grande maioria dos espectadores, enfadonho e não atrativo, mas não deixa de ser narrativo. Como defendem alguns teóricos do cinema, não existe cinema não-narrativo desde que uma única imagem figurativa brote na tela. Um filme que não se encaixa na estrutura da “arquitrama” e que traz uma narrativa frouxa, embora muito atraente, é ‘Boi Neon’ (2015), do pernambucano Gabriel Mascaro, uma produção Holanda, Brasil e Uruguai.
Por mais que imaginemos o protagonista Iremar (Juliano Cazarré) sonhando com seus croquis para materializar em tecidos e lantejoulas seu sonhos de estilista, num universo de machões preconceituosos, o protagonista não se move firmemente nesse sentido, restringindo a se exercitar nas horas vagas produzindo desenhos que vestirão as garotas para o deleite dos peões e do próprio Iremar. Há conflito claro e bem definido nessa história de Mascaro? Acredito que não. A zombaria e a desconfiança dos colegas do protagonista não se constitui um conflito, uma força antagônica, que o leve a agir e à história a se desenvolver rumo a uma resolução.
O que torna a narrativa de ‘Boi Neon’ por demais atraente são as situações construídas que vão se sucedendo, ora com atritos entre os personagens (mas não como um “conflito motor” da história), ora com muito senso de humor que brota dos personagens e das situações, ora com imagens sedutoras exacerbando o erotismo – presente amiúde no imaginário do protagonista e do universo representado ao longo de toda narrativa, cujo desfecho (se podemos chamar assim) é uma bela e longuíssima trepada na última cena do filme. Um choque para nós espectadores incautos quando atônitos, inesperadamente, vemos os créditos surgirem na tela.