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‘Paloma’, longa de Marcelo Gomes, e o lugar de fala: notas para uma provocação

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Quem pode narrar o quê? Uma discussão recente, sobretudo no campo das artes narrativas, é a questão do lugar de fala. Quem tem direito a narrar histórias sobre determinadas comunidades, grupos étnicos e sociais? Sabemos que historicamente essa questão esteve sempre alijada dos embates da arena política, social e cultural. Nos dias atuais, o lugar de fala tem gerado polêmicas e acirrados debates. Uma delas com o ator baiano João Miguel (‘Cinema, aspirinas e urubus’, também do pernambucano Marcelo Gomes), homem branco, por ter encenado e protagonizado o monólogo ‘Bispo’, inspirado na história de um personagem real, homem negro, Arthur Bispo do Rosário, diagnosticado esquizofrênico paranoico.

A tendência, me parece, é que a polêmica está refecendo aos poucos. Políticas públicas para a cultura nos governos que antecederam à nefasta entrada em cena do inominável, reconheceram que era preciso fomentar a participação de diferentes grupos étnicos, de mulheres e da comunidade LGBTQIA+ na produção de conteúdos artístico-culturais, entre eles o audiovisual. Já não é tão raro editais específicos para esses grupos, onde se exige, ou no mínimo se estimula, a participação de seus integrantes nas equipes em funções significativas.

Cito aqui o exemplo da atriz e cineasta paraibana Danny Barbosa, mulher trans e negra, diretora dos curtas ‘Café com rebu’ (2020) e ‘Pedra polida (2022) que teve o cuidado de incluir na equipe, em diversas funções, protagonistas negras e trans, além de estagiários visando a formação dessas pessoas para o cinema e audiovisual. Claro que defendo uma participação mais igualitária de mulheres, negros, índios e LGBTs, entre outros grupos, em funções principais nos sets de filmes e outros produtos audiovisuais, como em diversas outras artes narrativas (o teatro e a literatura, por exemplo), contando histórias sejam de seu próprio universo ou não. Essa injustiça histórica deve ser urgentemente reparada. Estamos apenas no início.

Na história do cinema e da televisão brasileira, até recentemente, gueis, lésbicas e travestis eram tratados de forma caricatural e negativa, antes do surgimento da sigla LGBTQIA+ e de sua ampliação para incluir outras identidades de gênero e sexual. Ora os personagens eram motivo de chacota, ora eram representadas como gente de má índole. E chamo atenção aqui para o fato de que alguns desses roteiristas e diretores eram gueis. O que explica esse tratamento “distorcido”? Arrisco a especular aqui que havia uma diretriz das emissoras nesse sentido ou que esses autores gueis estavam imbuídos do preconceito social daquele momento. Raríssimos filmes ou novelas representavam o guei, a lésbica e a travesti com dignidade.

Paloma, uma mulher trans, é a protagonista que dá título ao oitavo longa-metragem de Marcelo Gomes, diretor de ‘Os brasileiros’ (2000), ‘Cinema, aspirinas e urubus’ (2005), ‘Viajo porque preciso, volto porque te amo’ (2009), ‘Era uma vez eu, Verônica’ (2012), ‘O homem das multidões’ (2013), ‘Joaquim’ (2017) e ‘Estou me guardando para quando o carnaval chegar’ (2019). Inspirada numa história real, a partir da leitura de uma notícia de jornal, a de uma mulher trans e trabalhadora agrícola de uma pequena cidade do interior de Pernambuco que deseja ardentemente realizar seu maior sonho: o de casar com seu companheiro Zé (Ridson Reis) sob as bênçãos da Igreja católica.

Paloma, interpretada pela arte-educadora, atriz e diretora teatral trans Kika Sena, move mundos para realizar seu sonho, recorrendo ao padre João Manoel (Buda Lira) que nega seu pedido baseado nos cânones da Igreja. A segunda tentativa é uma carta ao Papa, escrita por sua amiga travesti, também sem êxito, até chegar a uma indicação do próprio padre de um celebrante nas brenhas do sertão, mas Paloma “não quer casar no meio do mato não”. O casamento se realiza, mas vai transformar radicalmente a vida da protagonista. No elenco, além de Buda Lira, as paraibanas Ana Marinho e Suzy Lopes.

Meiga e sonhadora, Paloma é uma personagem que cativa rapidamente o espectador (desprovido de preconceitos, claro). Mãe dedicada, não mede esforços para educar a pequena Jenifer (Anina de Souza Macedo) junto com o companheiro Zé que, diga-se, assume tranquilamente a relação. No entanto, o afinco de Paloma em se casar com véu e grinalda na igreja incomoda o companheiro. A personagem é construída de forma delicada e sem afetações pelos roteiristas Marcelo Gomes e Armando Praça, daí a imediata empatia, o que contribui, e muito, a maravilhosa interpretação da atriz Kika Sena. Com ‘Paloma’, Marcelo Gomes demonstra que um homem cis (hétero ou guei), pode falar com sensibilidade e com conhecimento de causa de um universo que, necessariamente, não seja o seu.

O conceito de lugar de fala é trabalhado pela filósofa Djamila Ribeiro, mulher negra, no livro ‘O que é lugar de fala” (editoras Letramento e Justificando, 2017), onde a autora conclui com essa reflexão que cito aqui literalmente: “Um dos equívocos mais recorrentes que vemos acontecer é a confusão entre lugar de fala e representatividade. Uma travesti negra pode não se sentir representada por um homem branco cis, mas esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans e travestis a partir do lugar que ele ocupa. Acreditamos que não pode haver essa desresponsabilização do sujeito do poder. A travesti negra fala a partir de sua localização social, assim como o homem branco cis.”

O filme ‘Paloma’ (2022, 104min, Portugal/Brasil ) está em cartaz durante este mês no Cine Banguê do Espaço Cultural.

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