A efeméride que provocou a coletânea de textos que celebram os cem anos de nascimento do cineasta português António Campos (1922-1999), levou-me a uma imersão na sua obra, um legado de mais de 19 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens de ficção e documentários. A iniciativa foi dos editores da revista Doc ON-line (Revista Digital de Cinema Documentário) Manuela Penafria, professora da Universidade da Beira Interior (UBI), Portugal, e Marcius Freire, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
No artigo que produzi, a convite dos editores, para esta 32ª edição da revista , debrucei-me sobre a obra documental de António Campos refletindo sobre as estratégias de abordagem de aspectos do real selecionadas pelo cineasta na estruturação de suas narrativas. Optei assistir aos filmes de António Campos com uma olhar “virgem”, sem nenhuma informação prévia do que foi dito sobre o cineasta. Percebi que o afeto de Campos por Leiria, cidade onde nasceu, salta aos olhos no seu Leiria 1960 (1960), contudo, esse amor transborda para todo o país nos demais documentários de sua filmografia.
É o Portugal arcaico, cujos costumes ancestrais caminham para o desaparecimento, que Campos urge em registrar. Neste sentido, há uma cristalina conexão com as inquietações de Robert Flaherty e seu “naturalismo documental”. Até mesmo na sua produção ficcional, vislumbramos essa necessidade do uso dos cenários naturais e urbanos para situar o enredo dos seus filmes, criando uma ambientação para suas histórias ao mesmo tempo em que documenta um determinado estágio da vida social.
O gênero documental, como sabemos, nasceu sob a égide da mise-en-scène. Os irmãos Lumière tentaram pelo menos três vezes registrar com a sincronia desejada a saída dos operários da usina da família para que o portão se fechasse exatamente quando todos os operários o tivessem atravessado. Robert Flaherty encenou diversas situações para representar costumes dos inuítes (indígenas do Ártico canadense, Groenlândia e do Alasca), práticas não mais em voga, solicitando à gente da comunidade a representação de papeis que convinham à narrativa. Narrativa esta estruturada numa construção dramática bem próxima à ficção com direito à tensão (clímax) e desfecho.
Flaherty, portanto, selecionou as estratégias de mise-en-scène que achou mais pertinentes para falar do mundo histórico, usando artifícios da narrativa ficcional. Nanook, o esquimó (1922), o documentário pioneiro, terminou por fazer escola. Aruanda (1960), do paraibano Linduarte Noronha, considerado inspirador do Cinema Novo brasileiro é herdeiro direto de Nanook. A forma como o cineasta recorre às matérias de expressão do cinema para organizar o seu discurso redunda no que o teórico estadunidense Bill Nichols chama de “a voz” do documentário, sua perspectiva sobre o tema e a visão de mundo do diretor. Como Flaherty e Jean Rouch, António Campos se insere na tradição do que se estabeleceu como documentário etnográfico, quando usando seus próprios sistemas de representação aborda uma determinada cultura com o fito de descrevê-la e interpretá-la.
Nesta construção de uma perspectiva sobre o sujeito de sua representação (mise en scène do cineasta), o documentarista utiliza de forma unívoca, ou híbrida, um ou mais modos de modos de representação do real identificados por Nichols (modo expositivo, poético, observacional, participativo, reflexivo e performático) para seduzir o espectador com sua narrativa. Identificamos em António Campos a utilização de três destes modos: a estética expositiva, a observacional (no estilo cinema direto dos anglo-saxões) e a participativa/interativa do cinéma verité dos franceses.
A obra documental de António Campos é diversa e criativa. O cineasta não se limita ao emprego de um modo de abordagem apenas na maior parte dos seus documentários e, quando o faz, não adota todos os procedimentos que são característicos de cada uma dessas formas de tratamento cinematográfico do real. Por exemplo, em Ex-votos portugueses Não há uma única voz over, uma voz de autoridade, cobrindo as imagens comum nos documentários expositivos. Campos lança mão de procedimentos diversos mesclando-os de forma criativa. Vivendo aparentemente desconectado do meio cinematográfico de Lisboa, supomos que esse distanciamento, talvez, tenha contribuído para deixá-lo livre das amarras das influências de uma estética dominante praticada no centro cultural do país, permitindo uma maior inventividade na escolha e tratamento dos temas de seus documentários.
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