A Netflix disponibilizou ‘Ataque dos cães’ (2021, 2h08h), o mais recente filme da cineasta neozelandesa, Jane Campion, aquela que surpreendeu o mundo com ‘O piano’ (1993), filme que a consagrou nos quatro cantos do planeta. Quem não se lembra da cena impactante em que o marido traído corta o dedo de Ada (Holly Hunter) levada da Inglaterra à Nova Zelândia para um casamento arranjado? Em ‘Ataque dos cães’, Campion volta a mais um filme de época para tratar um tema tabu nos Estados Unidos dos anos 1920.
Baseado no romance ‘The power of the dogs’, de Thomas Savage, nesta história, Phil (Benedict Cumberbatch) um fazendeiro rude vê a relação com o irmão George (Jesse Plemons) se deteriorar quando este se casa com a viúva Rose (Kirsten Dunst) mãe do delicado adolescente Peter (Kodi Smit-Mcphee). O filme de Campion, que também assina o roteiro, teve estreia mundial no 78º Festival Internacional de Cinema de Veneza em setembro antes de seu lançamento, dois meses depois, na Netflix.
O conflito inicial, e mais evidente ao longa da narrativa, se dá entre Phil e a nova família do irmão George. No entanto, o embate vai paulatinamente migrando para Peter, o introspectivo rapaz traumatizado pelo suicídio do pai alcóolatra que encontrou enforcado. Num mundo de brutos, Peter é airoso demais e passa a ser achincalhado pelos machões do lugar liderados pelo agressivo Phil. Peter não é chegado a montarias e dedica seu tempo a leituras, à confecção de delicadas flores de papel e a ajudar sua mãe no restaurante que atende os trabalhadores da fazenda e cowboys de passagem pelo lugar.
Peter tenta não se abalar com o assédio violento dos vaqueiros de Phil quando chega de férias à fazenda do padrasto George. A reviravolta se dá quando Phil decide dedicar seu tempo a mudar a atitude “pouco viril” do rapaz, ensinando-o a cavalgar pela região erma e a confeccionar cordas de couro, o que incomoda e preocupa Rose. Ela, por sua vez, tem o carinho do marido George e do filho, mas a cada dia, às escondidas, se entrega ao álcool. Nos infinitos horizontes da paisagem do oeste estadunidense, os dramas desses quatro personagens vão sendo tecidos pelas habilidosas mãos da roteirista e diretora.
Nesta narrativa fílmica, a paisagem com suas planícies e montanhas rochosas de Montana, estado onde se localiza a grande fazenda dos Burbank, é um elemento orgânico ao filme. Sua vastidão impressiona e contrasta com os dramas intimistas dos personagens. É interessante informar que as locações de ‘Ataque dos cães’ foram encontradas no próprio país da diretora. A direção de fotografia (também chamada de cinematografia) de Ari Wegner explora essa imensidão do cenário que imprimiu uma marca no gênero western ao longo de sua história. A aridez de grande parte da paisagem é também a aridez da alma de alguns personagens, sobretudo a de Phil Burbank.
Parte da narrativa, extraída do livro de Thomas Savage, é baseada em fatos reais. Savage nasceu e viveu em Salt Lake City nos Estados Unidos (1915-2003) e, como os personagens Peter e Phil, era gay e sempre viveu no armário transpondo para o romance ‘The power of the dogs’ (1967) parte de sua própria história. Aos 24 anos casou com a também escritora Elizabeth Fitzgerald. Como escritor, publicou diversos romances entre 1944 e 1988 tendo como tema o faroeste. Em ‘Ataque dos cães’, o oeste é o do ano de 1925, já com automóveis coabitando com seus cowboys e cavalos.
O personagem Phil devota verdadeiro culto ao seu amigo morto Bronco Henry, que o preparou para a montaria e longas viagens pelo velho oeste. Phil guarda a sela de do cavalo de Henry como um objeto de veneração à memória do amigo protetor. Agora, surpreendentemente, tenta fazer de Peter seu aprendiz. A relação entre os dois transparece uma certa cumplicidade. Mas a trama, delicadamente tecida por Jane Campion, vai nos surpreender.
Sorte de podermos recorrer ao streaming para ver e rever o filme e descobrir as sutilezas de alguns detalhes.
Exemplo: um close mostra a mão cortada de Phil que tece uma corda de couro retirado por Peter de um boi morto pelo antraz (doença contagiosa e mortal). Aqui o objeto tem dupla função: a primeira, mais explícita, é mostrar Phil ensinando a Peter a confeccionar o objeto. A segunda, não podemos mencionar por se configurar um spoiler.
A filmografia de longas-metragens de Jane Campion (como diretora, porque ela produziu outros) vem de 1986 com o drama ‘Two friends’, seguido por Sweetie’ (1989), ‘Um anjo em minha mesa’ (1990), ‘O piano’ (1993), ‘Retrato de uma mulher’ (1996), ‘Fogo sagrado’ (1999), entrando os anos 2000 com o thriller ‘Em Carne Viva’ (2003) e o romance ‘Brilho de uma paixão’ (2009). No ano anterior, Campion de juntou a cineastas de diferentes origens (Wim Wenders, Abderrahmane Sissako, Mira Nair, Gael García Bernal, Jan Kounen, Gaspar Noé e Gustave Van Sant para o longa ‘8’, uma produção francesa sobre os oito objetivos o milênio. Pelo que constatamos em ‘Ataque dos cães’, o vigor criativo da diretora está longe de se esgotar.