A conversa com o professor Guilherme Ataíde Dias deveria ser sobre software livre. Aliás, começou sobre esse tema, mas foi evoluindo e acabou sendo um pouco de tudo que envolve a tecnologia da informação. Dos problemas de como proteger o direito autoral ao futuro das redes sociais mediadas por computador. Da WEB 3.0, ou semântica, à inteligência artificial. Apesar de otimista, Dias, que é doutor em Computação e tem formação em Direito, não se arrisca muito em exercícios de futurologia, o que considera um perigo, mas tem uma certeza: “Estamos apenas no começo”.
A entrevista
– Diante do estágio de desenvolvimento tecnológico que chegamos, ainda há espaço para o software livre?
– O software livre é vitorioso. A arquitetura da internet é baseada em software livre. Eu diria que 90% do tráfego de dados na internet são baseados em software livre. Veja, por exemplo, o Linux – não confunda Linux com Unix. O Linux, que é uma variante do Unix, é quem manda na internet. Servidores da maior parte das organizações são baseados em Linux.
– Apesar da massificação do Windows?
– Apesar dessa massificação, o Linux é o núcleo da internet. Está vendo esse celular aqui? É um celular com sistema operacional “Android”. O núcleo do “Android” é Linux. Então, as grandes empresas utilizam Linux e você, usuário final, não sabe.
– Invadiu o dia a dia sem ser notado?
– Existe uma grande probabilidade de 90% de se chegar numa operadora de celular pedir um smartphone e ele vir com o Linux interno sem você saber. Esse Linux se chama “Android”. A outra opção para smartphone chama-se IOS que é da Apple. Esse é um sistema proprietário.
– Qual é a grande vantagem?
– A grande vantagem do software livre é a liberdade. A liberdade de você alterar e adaptar esse programa às suas necessidades. Veja o caso do editor de texto Word, eu todo mundo utiliza. É um software proprietário, ou seja, a Microsoft é dona desse produto. Se você quiser fazer alguma alteração nesse produto, você não vai conseguir, porque ele está regido por uma licença-proprietária.
– Mesmo que se tenha uma boa ideia?
– De forma alguma. A dona é a Microsoft. No caso de um editor baseado no paradigma do software livre – o Open Office, o BR Office – no caso aqui do Correio – apareceu uma necessidade, que o Windows não oferece – se pode programar o produto para atender sua necessidade. Essa é a grande vantagem do software livre.
– o que não quer dizer que é gratuito?
– Não confunda liberdade com gratuidade. Software livre, necessariamente, não é grátis. A IBM vende software livre. Na verdade não se está comprando o software, mas o serviço. Compra-se o produto pela internet, pode-se baixar e se de meia noite der um problema? Um produto eu controla a impressora do jornal. Se der um problema, a uma da madrugada, antes do jornal sair, para quem se vai ligar?
– Para o suporte.
– Mas livre não tem. Então, você pode ligar para a IBM ou outra empresa lhe dar o suporte. O software livre não está associado à gratuidade e sim a liberdade de uso.
– Para o cientista qual o mais desafiador?
– Já fui xiita no sentido de defender integralmente o software livre. Se não fosse software livre para mim não prestava. Era algo quase religioso. Mas hoje mudei minha visão. Existe espaço para os dois tipos de software.
– Onde o software livre funciona?
– Onde existem usuários com grande necessidade de resolver um problema resolvido por esse software.
– E o proprietário, onde é recomendado?
– Há casos em que o software livre não funciona. Por exemplo: a Petrobras está necessitando de um software para monitorar uma plataforma de petróleo. Não vai conseguir software livre para isso, porque ele é feito, normalmente, por varias pessoas disseminadas na internet parta resolver um problema comum. Quando o problema é muito específico, não se encontra software. Terá que se contratar uma empresa para produzi-lo. Então, hoje vejo mais claro: existem possibilidades de uso para os dois paradigmas. Seria radical dizer que só o software livre presta ou que só o software proprietário presta. Há espaço para os dois e as aplicações são distintas.
– Para o usuário, qual é mais desafiador?
– Acho indiferente. O usuário quer um produto que funcione que atenda às necessidades. O “Android” a que me referi nos celulares é um sucesso e o usuário sabe que é baseado em software livre. Não tem a menor ideia disso.
– O “Android” não é da Google?
– É da Google: a casca. Internamente, as entranhas são baseadas em Linux. O que a Google fez? Ela usou um pedaço e, em cima, adicionou uma camada dela. O Banco do Brasil, por exemplo, na rede de caixas eletrônicos, todos usam Linux e ninguém sabe. A grande vantagem é a customização, a liberdade de alterar, de mexer de adequar às suas necessidades, o que o software-proprietário não permite.
– O Usuário quer o software que funcione. E as grandes empresas?
– As grandes empresas têm interesse no que dá mais lucro para elas. Não interessa se seja livre ou proprietário. Um exemplo é o Google com o “Android” ou a IBM que também usa software livre. O interesse é maximizar o lucro.
– A filosofia de que pode ser compartilhado por muitos não interessa?
-A filosofia é o resultado final, os bônus e dividendos, que deixam os acionistas felizes.
– Aliás, é o que move o capitalismo…
– É o interesse final. Se o software livre der dinheiro, as grandes corporações irão atrás dele, vide Google. Eu conheço a Google, cientistas que trabalham lá. E eles usam o Linux modificado. Veio livre e foi absorvido pelas grandes corporações. Então, a religião é o dólar, o capital.
– E no caso dos governos, dos segredos militares?
– Esse é um ponto muito importante. Neste caso, entendo que o software livre tem clara vantagem, porque o software-proprietário é uma caixa preta. Ninguém sabe o que tem ali dentro. Veja o caso do programa brasileiro para comprar caças para a Aeronáutica. Um dos problemas é que os americanos não queriam entregar os softwares dos caças F-18 com o código fonte. Só fechado.
– Mas qual seria o problema?
– Vamos supor um conflito, ninguém sabe o que está dentro daquele software. Pode ser que um caça brasileiro queira abater uma aeronave americana e na hora de apertar o botão não vá.
– Ou eles, remotamente, terem acesso a informações que o governo brasileiro não queira compartilhar…
– Então, um dos requisitos para compra dos caças é que todo software que esteja embarcado no sistema seja aberto. E aqui vou fazer uma distinção: aberto não quer dizer livre. O importante é que o comprador tem acesso ao código fonte para fazer as modificações que julgue necessário e para entender como funciona. Os outros concorrentes, França, Suécia e Rússia. Todos dão o código fonte. Para atender as necessidades de defesa não se pode comprar uma caixa preta.
– Qualquer modificação feita no software terá que ser disponibilizada com todos que fazem parte da comunidade?
– Quando você faz alguma alteração, quando se melhora, esta adaptação tem que estar disponível com sua comunidade. O software livre permite que as melhorias sejam compartilhadas.
– No caso militar, então, seria um problema…
– No caso teria que ser aberto. Compra-se de um fornecedor que lhe dá o código.
– O que é esse código que tem permeado essa nossa conversa desde o início?
– São os algoritmos. Os algoritmos implementados através de uma linguagem de computador. O que é o algoritmo? Uma sequência de instruções, que vai dizer o que a máquina deve fazer quando receber determinada informação. E esse código é escrito numa linguagem de computador qualquer: assembly, pascal, Java.
– Como o senhor vê essa explosão das redes sociais? É um caminho sem volta?
– Os homens sempre tiveram necessidade de se comunicar com os outros homens. A tecnologia, hoje, prover formas de maximizar esta comunicação, através da internet. Isso é um caminho sem volta. Daí para mais. A gente não sabe o que o futuro vai trazer. Eu acredito que nós só estamos começando agora. Só estamos vendo a ponta do iceberg.
– O que o leva a pensar que estamos no início?
– Tenho certeza que o potencial de comunicação pelas redes mediadas por computador não foi aproveitado nem 10% até agora.
– Em suas reflexões o senhor imagina que podemos chegar aonde?
– Exercício de futurologia é algo extremamente complexo, mas eu acredito que o futuro são os sistemas imersivos: 3D, sistema de realidade virtual, sistemas baseados em holografia. E também os sistemas que fazem uso da WEB 3.0, que se chama WEB semântica ou WEB com sentido.
– O que vem a ser essa WEB semântica, com sentido?
-As páginas da WEB hoje elas são feitas em HTML. Elas foram feitas para mostrar visual, imagens. A WEB 3.0 traz sentido para essas páginas. Elas além de serem codificadas para lhe mostrar o visual elas têm outras informações.
– De que Tipo?
-Você poderá entrar numa página e seu navegador ficar sabendo, por exemplo, que seu dentista saiu, que ele vai voltar tal hora, que ele trabalha com tais e tais especialidades. No fundo dessa WEB semântica existe algo chamado ontologia, que é uma forma de se representar o conhecimento. Como se adquire informação na WEB semântica? Através de um agente. Um agente é um procurador, no mesmo sentido do procurador no mundo físico. Transfere-se poderes a alguém para fazer algo por você.
-Por exemplo…
– Por exemplo, o exemplo do dentista a que me referi. Você pode determinar ao agente para verificar quais são os dentistas que trabalham com tal especialidade e qual é a hora em que ele pode atender e me marque. Essa é uma aplicação da WEB semântica.
– O sentido é o objetivo?
– Chama-se WEB semântica, porque vem de sentido e esse sentido está contido nas ontologias. Não são os sentidos humanos, mas de representar conhecimento, o que não ocorre nas páginas de hoje. Isto está latente, surgindo agora, mas é este o caminho.
– A “grid computing” é outra estrada para o futuro?
– O que é a “grid computing”? A empresa, por exemplo, não precisa comprar um computador. Você compra o serviço como faz com energia. Você tem gerador em casa para energia? Não tem! Águia você compra da Cagepa. O conceito em inglês chama-se utility computing: você compra o serviço que vem de algum lugar que não interessa. Paga pelo consumo, o que já existe hoje.
– Mas até pouco tempo era só uma promessa, que nos leva a crer que a WEB 3.0 será uma realidade rapidamente…
– Na década de 80 houve uma expressão muito famosa: inteligência artificial. A inteligência artificial, como prometida nos anos 80, não se consolidou, mas gerou uma série de tecnologias que todo mundo utiliza hoje em dia, como redes neurais.
– E essa inteligência artificial a que o senhor se referiu e que frustrou as expectativas de muita gente?
– Não se concretizou, mas gerou produtos baseados nesses estudos. A ontologia é um filho disso. Aquela do filme é só ficção, ainda.
– O senhor acredita que caminharemos para essa inteligência artificial?
– A gente vai chegar muito perto disso. A IBM criou o computador “Deep Blue”, que derrotou o campeão mundial de xadrez Gari Kasparov. Depois do “Deep Blue” ouve outra iniciativa da IBM para um jogo de perguntas e respostas famoso da TV americana, o Jeopardy. Qualquer pergunta o Jeopardy responde. A máquina da IBM derrotou todos os humanos que participavam do programa. Talvez a gente chegue a um nível de inteligência
– E a qual não deveremos chegar?
– A genérica, generalizada, mas sim às específicas para certos domínios. Se terá uma máquina dessa que responda sobre doenças do sangue. Acho muito difícil chegar a algo – pelo menos com a tecnologia que a gente tem hoje – que apreenda todos os domínios do conhecimento humano. Não podemos dizer: a máquina pensa!
– É comum hoje se falsificar perfis até em nomes de empresas nas redes sociais. O que fazer para se coibir esses abusos?
– A solução aí é o ofendido pedir ao provedor que retire. Prove que está sendo lesado. Isso fere o direito moral. O problema é quando isso é fora do Brasil, quando uma rede social dessas não está aqui. Google e Facebook já respondem no Brasil. Há mecanismos para acionar legalmente essas instituições. É factível.
– Então aquela ideia românica de que a internet é “terra de ninguém” não existe?
– Não. Há formas de seu resguardar direitos. O problema é quando esses provedores de serviços estão longe do alcance da legislação local. Aí isso é um problema.
– Já se tem solução para a questão dos direitos autorais?
– Isso é um problema. A propriedade intelectual no nosso ordenamento jurídico tem duas acepções. Pode ser propriedade industrial e pode ser direito autoral. Vejo problema nas duas searas. No Brasil, o direito autoral está relacionado ao Direito Civil e a propriedade Industrial ao Direito Comercial. Há uma série de problemas em nosso ordenamento para garantir a titularidade do Direito da criação das pessoas ou empresas.
– Mas antes da internet não era tão gritante?
– Não vou dizer a internet, mas o mundo digital, que é mais amplo. Um exemplo: No Brasil o software é protegido? Está vinculado no direito à propriedade industrial ou autoral? No direito autoral. Isso é complicado. Vou ao exemplo; o que é que a lei protege? Protege o código. Mas não protege a expressão desse código, que é isso, que a gente quer proteger.
– Na prática, como seria essa proteção à expressão?
– Você já notou que a grande maioria dos campos de busca nas páginas da WEB está no canto superior direito? Estudos foram feitos e provaram que ali era o melhor lugar. Alguém investiu nisso, alguém tem que ser remunerado por isso. Aqui no Brasil você protege o código, mas não protege essa expressão.
Correio da Paraíba