Um funcionário da Câmara Municipal de João Pessoa encontrou, por acaso, uma série de documentos históricos que retratam o cotidiano da capital paraibana nos idos de 1800. Entre as curiosidades da época está o registro, pelos vereadores daquela época, da disputa entre moradoras e um padre pela posse da água. Outro fato pitoresco foi a oferta, por um diplomata, de uma máquina para restaurar vidas.
O acervo foi descoberto pelo arquivista Eron Mendes de Carvalho no final de 2017 quando ele organizava documentos que seriam digitalizados. Em meio à papelada, ele percebeu que havia peças com grande valor histórico: “Os documentos eram muito sensíveis e eu já tinha nição da importância que eles tinham, mas eu queria que eles pudessem ser guardados e compartilhados. Procurei alguém apaixonado pela história, o professor Ângelo Emílio, ele os analisou e viu que eles eram fidedignos e raros. Além disso, eles precisavam de um tratamento especializado e foi por isso que eles foram direcionados à preservação”, contou.
A Fundação Casa de José Américo e o Laboratório do Arquivo Central da UFPB foram acionadas para cuidar do acervo da Câmara, que está sendo restaurado.
Do Departamento de História da UFPB, o professor Ângelo Emílio conversou com o ParlamentoPB e contou alguns dos trechos curiosos registrados pela Câmara da época, responsável. Ele explicou que na administração pública desde o século XVI até a República, era a Câmara que agregava quase todas as funções públicas. Conserto de estradas, de pontes, segurança pública e abastecimento de água e gêneros alimentícios passavam pela Câmara. “São muitas informações miúdas que dificilmente encontraríamos em algum outro lugar”, disse, comparando as notas do legislativo da época à pauta de um telejornal de hoje.
Por exemplo, nos documentos da Câmara consta que em 1828 o Padre Antônio Lourenço cercou terras na região do Varadouro e começou a cobrar arrendamento às pessoas que faziam plantio de capim no local. Depois, José Gomes Pessoa, provavelmente um vereador da época, conta que o mesmo padre bloqueou uma cacimba no local, conhecido como lugar das “Convertidas” onde hoje fica a Rua Maciel Pinheiro e passou a cobrar pelo uso da água: “Ele acusa o padre de cobrar de pessoas pobres e das ‘venâncias’, que devem ser moradoras da região. Já as ‘convertidas’, pelas pesquisas que fizemos, indicam que a diocese de Pernambuco tinha mandado construir uma casa para as mulheres que haviam abandonado a atividade da prostituição. Elas passaram a ser chamadas de ‘convertidas”.
Há outro documento interessante que foi enviado de Londres em 12 de dezembro de 1825 por Manoel Rodrigues Pessoa com a oferta de uma máquina que se propunha a restaurar a vida de pessoas vítimas de afogamento. “É curiosíssimo! Ele usa uma linguagem rebuscada para oferecer essa máquina. Ele diz que a Câmara deveria designar um lugar na praia para a máquina e seria feita uma espécie de test-drive… não sei quem seria a cobaia da experiência, mas a todo tempo ele diz que será um ato de benemerência à humanidade, mas podemos supor que fosse um golpe, embora ele não cite nenhum valor”.
O autor da carta era ministro do Império do Brasil para o Tratado de Independência e também foi o negociador do primeiro empréstimo externo com o banco Rotschild. Anos depois, tornou-se Visconde de Itabaiana e quando ele morreu, Dom Pedro II custeia a lápide dele. “Era alguém de bastante relevância no cenário nacional. Nas horas vagas, trabalhava com a máquina dos afogados. Há um outro documento dizendo que ela chegou a Recife, mas se veio a João Pessoa ainda não se tem comprovação”, disse.
O professor explicou que este tipo de engenhoca era típico da época de Pós-Revolução Industrial. “Foi muito comum que houvesse esse tipo de novidade. Na década seguinte, Martins Pena contava que um inglês fabricava máquinas maravilhosas, mas ele era na verdade um golpista”.
Confira a entrevista na íntegra no vídeo abaixo: