A sra. Lin Shoying (Chen Shu-Fang) é velha conhecida no mercado de peixes de Tainam, cidade na costa sudoeste de Taiwan. No seu aniversário, ela é saudada pelos vendedores do lugar onde compra os ingredientes para o jantar de celebração do seu dia. Abandonada pelo marido, ficou com três filhas a quem se dedica incansavelmente. No entanto, a morte do ex-companheiro vai abalar a rotina da família. Este é o enredo de Mulheres Ocultas (Little big women, 2020, 123min), dirigido pelo taiwanês Joseph Chen-Chieh Hsu, com estreia na Netflix.
As relações familiares são uma temática constante nos filmes asiáticos. No cinema japonês, temos sua maior representação no cineasta Yasujiro Ozu, o diretor da câmera imóvel e enquadramentos em câmera baixa que imortalizaram sua forma de fazer cinema através de filmes como Filho único (1936), Os irmãos e irmãs Toda, (1941) Ele é um pai (1942), Pai e filha (1949), As irmãs Munekata (1950), Era uma vez em Tóquio (1953), A rotina tem seu encanto (1962), a maioria deles trazendo referências familiares nos títulos. Joseph Hsu, em Mulheres Ocultas torna-se herdeiro dessa tradição.
O maior expoente do cinema da China insular é o aclamado Hou Hsiao-sien, com obras assíduas em festivais internacionais de grande envergadura, cujo estilo é analisado por teóricos como o norte-americano David Bordwell a quem dedicou um capítulo do seu livro Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema (2008) ao lado de veteranos do cinema a exemplo do francês Louis Feuillade, do grego Theo Angelopoulos e do japonês Kenji Mizoguchi
Vamos ao enredo. Há mais de uma década sem dar notícias à senhora Lin, o ex-marido Chen, policial aposentado, morre no dia do seu aniversário. Mas Lin decide não cancelar a festa. E canta para os presentes uma canção que diz “Adeus para o amor que não foi feito para mim”. Esta canção, como a outra que canta no karaokê do táxi com a neta Clementine (Chen Yan Fei), O sabor da solidão, faz da música elemento coadjuvante da narrativa. Lin vai até o hospital com a neta, sem que suas filhas saibam, para descobrir quem hospitalizou o marido, demonstrando que sua história de amor não terminou com a separação e a morte de Chen. Igualmente com a cumplicidade na neta, vai à Taipei, capital do país, fazer uma visita surpresa a atual mulher do ex-marido.
Apesar dos temas indigestos da morte, traição e rancor, Mulheres Ocultas é um filme leve; é justamente o funeral que traz as situações sutilmente cômicas. Primeiro, o dilema na família dividida entre realizar o ritual e pagar por isso ou deixar essa responsabilidade para a segunda mulher do morto; depois, a dúvida entre fazer um ritual taoista ou budista para o defunto seguir em paz. A senhora Lin quer um funeral luxuoso para o ex-marido. Ela e as filhas se reúnem no funeral todas os dias, ondem comem e bebem e confeccionam adereços usados no ritual de despedida. O curioso é que Chin se apresenta como a esposa de Chen para seus amigos de Taipei, onde ele vivia com a sua segunda mulher Tsai Meilin (Ding Ning), presente um dia anonimamente no velório.
É no decorrer dos dias do funeral, que Ching (Ying-Suan Hsieh), uma das filhas de Lin, descobre a recidiva de um câncer. Ela é professora de dança e começa a se envolver com um antigo colega de turma, agora divorciado. Por sua vez, a filha caçula Jiajia (Ke-Fang Sun) é, sem que a mãe saiba, amiga da segunda mulher de Chen, com quem troca confidências. Jiajia é chef do restaurante da mãe. Yu (Vivian Hsu), a filha mais velha, mãe de Clementine, é cirurgiã plástica em Taipei e desconfia que o marido a está traindo. Hsu desenha um painel de situações do cotidiano dessas “pequenas grandes mulheres”, do título do filme em inglês, com diálogos inteligentes e humor sutil.
O roteiro de Mulheres Ocultas foi escrito a quatro mãos por Maya Huang e o diretor Hsu, também autor do argumento. O jovem Joseph Hsu traz na bagagem curtas-metragens (Peoples’Champ, 2013; Sample Work, 2014; The lobster Kid, 2015; Guo Mie, 2017) premiados em festivais na Ásia, na Suíça, Canadá e Estados Unidos. Além dessas direções, Hsu tem uma larga experiência internacional como produtor em mais de 20 curtas rodados em Singapura, Japão, Coreia do Sul e Nepal. Engenheiro, nascido e criado em Taiwan, enveredou no cinema como roteirista para, em seguida, se dedicar à direção, sua maior paixão.
Hsu é comedido na direção do seu longa de estreia, evitando estripulias com a câmera e optando por enquadramentos mais abertos nas cenas mais dramáticas e poucos movimentos de câmera. Temos aí uma herança do cinema dos japoneses Ozu e Mizoguchi, o primeiro com seus planos fixos e o segundo com um distanciamento dos personagens evitando planos próximos da ação principal nas cenas de maior carga dramática. Com exceção de três flashbacks, em um deles a senhora Lin invade o quarto de um motel com uma enorme faca para flagrar o marido com uma amante, as demais situações são quase prosaicas, encenadas com discrição e sem eventos excepcionais, a não ser a morte do patriarca e uma discussão entre as mulheres da família quando segredos do pai morto são revelados. Longe do excesso da cinematografia mainstream estadunidense, sobretudo, Hsu sabiamente opta pela contenção, seguindo à risca o pressuposto de que menos é mais.
