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Cartas como dispositivo para um documentário de busca em ‘Espero que esta te encontre…’

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A expressão “documentário de busca” foi utilizado pelo historiador e crítico de cinema, o franco-brasileiro Jean-Claude Bernadet, ao se referir aos documentários 33 (2009), de Kiko Goifman e Cláudia Priscilla, e Um Passaporte húngaro (2001), de Sandra Kogut. No primeiro o diretor Goifman se dá 33 dias, sua idade na época do início das filmagens, para encontrar sua mãe biológica e documentar essa busca. Kogut, por sua vez, registra a sua jornada na tentativa de obter um passaporte por conta de sua descendência húngara. A busca se constitui dispositivos nesses dois filmes e deflagra o seu processo.

Da mesma forma em ‘Espero que esta te encontre e que estejas bem’ (2020, 84 min.), roteirizado e dirigido por Natara Ney, cineasta pernambucana, o documentário tem como dispositivo um lote de 111 cartas encontrado numa feira de antiguidades no Rio. São missivas de amor trocadas entre dois apaixonados: ela vivendo em Campo Grande (MS) e ele na cidade do Rio de Janeiro. A descoberta das cartas motiva a busca da identidade desses amantes e o paradeiro deles, servindo de pretexto para uma abordagem do romantismo (à moda antiga do casal), memória, histórias e costumes da época. O filme está em Cartaz este mês no Cine Banguê do Espaço Cultural de João Pessoa com sessão em diferentes horários.

Do particular (o conteúdo das cartas) ao geral (o contexto social das cidades do Rio e de Campo Grande), o documentário se expande para falar de memória afetiva e dos costumes sociais do início da década de 1950. As correspondências trocadas datam do período de 1951-52, ocasião em que o casal mantém um romance à distância alimentado pela escrita de cartas entre ambos. Distante de um tempo onde a internet proporciona uma compressão espaço-temporal com o surgimento de aplicativos de troca instantânea de mensagens redundando numa surpreendente comunicação em tempo real, incrementada com recurso de sons e imagens. Para a geração de hoje, a narrativa de ‘Espero que esta te encontre’ deve parecer muito pitoresca.

O filme de Natara Ney nos prende pela curiosidade do desfecho dessa procura. O “documentário de busca” carece de um dispositivo para o seu desencadeamento e o registro desse processo é o que vai construir a sua narrativa. O desenlace é sempre imprevisível. Atingirá a diretora o seu objetivo encontrando os autores das cartas românticas? Kiko Goifman encontrará sua mãe biológica? Sandra Kogut conseguirá seu passaporte? O epílogo, claro, interessa ao espectador, mas é, certamente, a experiência do processo de busca que o envolve na fruição da narrativa. O filme de Natara Ney não é autobiográfico como 33 e Um passaporte húngaro, embora a subjetividade da diretora esteja fortemente presente através do seu texto e de sua própria voz na narrativa em voz over

Uma narrativa epistolar também já foi tema do instigante documentário ‘Cartas a uma Ditadura’ (2006), de Inês de Medeiros. Centenas de cartas escritas por mulheres, supostamente sem valor porque seriam cartas de amor, estavam abandonadas num alfarrabista. No entanto, o seu conteúdo revelou um  momento peculiar da história da ditadura portuguesa. O salazarismo em crise e sob forte pressão popular, está prestes a perder as eleições de 1958 com um candidato militar.

Desta forma, Salazar decide apelar ao apoio das mulheres com a criação de um fictício Movimento Nacional das Mulheres Portuguesas (uma grande fake news daquele período) que solicita da população feminina do país a escrita de cartas de apoio ao ditador. A partir desse curioso achado, a cineasta Inês de Medeiros vai em busca dessas personagens. O encontro com algumas delas, 50 anos depois, é surpreendente.

Natara Ney, além de diretora do curta-metragem ‘Um outro ensaio’, premiado no Festival de Gramado, é montadora e roteirista de mais de 20 longas-metragens, cinco séries para tv e diversos videoclips. Entre eles, ‘O Mistério do samba’ (de Lula Buarque e Carolina Jabor, 2008), ‘A última abolição’ (de Alice Gomez, 2018), ‘Além Hamlet’ (de Sandra Delgado, 2008) e ‘Divinas Divas’ (de Leandra Leal, 2017). Assina a direção de ‘Cafi’ (2020) com Lírio Ferreira, e ‘Elza Infinita’ (2021) com Erika Cândido.

‘Espero que esta te encontre e que estejas bem’ traz depoimentos de pessoas que se corresponderam através de cartas, onde relembram a ansiedade com a demora de uma resposta a uma carta enviada, gente que jamais imaginou que atingiríamos um estágio tecnológico que permitisse essa extrema imediaticidade dos nossos dias, onde o tempo chegou ao máximo de sua compressão. Embalado com uma romântica trilha sonora de época, o documentário nos leva a passear nesse tempo através de relatos de vários personagens sobre romance e costumes daquela década. Um deleite.

 

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