O conceito de cinema noir não é unanimidade entre estudiosos e críticos de cinema. O curioso é que os cineastas que realizaram esse gênero cinematográfico, duas décadas depois, nos anos 1970, não sabiam definir o conceito criado pelos franceses, em 1946, para categorizar esse tipo de narrativa utilizada num certo cinema estadunidense produzido entre as décadas de 1940 e 1950. O cinema noir seria uma espécie de guarda-chuva que abrigaria vários subgêneros comuns na época: filmes policiais, de gângster, de detetives, thrillers, etc. ‘Pacto de sangue’ (Double indemnity, EUA, 1944), de Billy Wilder, reúne todos os atributos que caracterizam o gênero.
Em ‘Pacto de Sangue’, uma obra noire por excelência, Wilder convidou dois atores que emprestaram seus rostos para os filmes noirs de maior repercussão: Barbara Stanwyck, aqui como a traiçoeira e manipuladora Phyllis Dietrickson, e Edward G. Robinson, protagonista de ‘Almas perversas’, da fase hollywoodiana do alemão e expressionista Fritz Lang. Em linhas gerais, o gênero noir abrigaria filmes com um estilo visual e narrativo sombrio e trágico, tendo como fio condutor o crime e sua investigação. Para as narrativas noires, portanto, não cabe um final feliz.
Walter Neff (Fred MacMurray), o protagonista de ‘Pacto de sangue’, chega fora do expediente ferido à empresa de seguros onde trabalha, liga um gravador e registra a sua jornada trágica: “Sim, eu o matei por dinheiro e por uma mulher. E não consegui nem o dinheiro e nem a mulher.” A partir daí, a história é contada em flashbacks, com volta e meia mostrando o personagem-narrador relatando seu infortúnio. Quanto mais sua narrativa avança, mais envolve o espectador.
Os teóricos da narrativa cinematográfica incluem a figura do personagem-narrador na categoria de subnarrador (ou narrador segundo) visto que o narrador ou, como preferem, “meganarrador” é em última instância o cineasta, aquele demiurgo que articula todos os materiais de expressão do cinema para conduzir da forma mais envolvente e satisfatória a sua história a ser materializada na tela. Para isso, o meganarrador pode delegar a um ou a vários personagens a condução da narrativa. É o caso aqui de Walter Neff, cuja história é toda narrada a partir do seu ponto de vista.
Um personagem típico do cinema noir, e aqui Walter Neff, encarna esse arquétipo, é o do homem íntegro que se deixa envolver por uma femme fatale, uma mulher ardilosa que o seduz e o leva a se corromper. Claro, há todo um imaginário misógino nas narrativas noires atribuído ao contexto da Segunda Guerra, quando as mulheres assumiram postos de trabalho e uma certa independência diante da ausência dos homens levados aos campos de batalha e à uma ausência compulsória do convívio doméstico. Muitos não voltaram e os que sobreviveram se encontravam sequelados física e emocionalmente. Era natural que os filmes noirs dos anos 40 refletissem, portanto, as transformações (sociais e sexuais) trazidas pela guerra e expressassem o pessimismo e a desilusão da sociedade depois de terminado o conflito.
O vendedor de seguros Walter Neff (Fred MacMurray), conhece Phyllis Dietrickson (Barbara Stanwyck) quando visita sua casa para tentar renovar o seguro dos carros da família. Audacioso, Neff investe pesado na sedução. O diálogo entre ambos é pleno de ironias e de duplo sentido. No final das contas, é Neff quem termina cegamente apaixonando por Phyllis que aparentemente corresponde aos sentimentos do rapaz. Infeliz com a indiferença do marido, Phyllis envolve Neff num plano diabólico: assassinar o cônjuge e receber do seguro uma boa soma. E, por sugestão de Neff, de uma forma que a indenização seja dupla, por parecer acidente. (Double indeminity, título original em inglês significa, literalmente, dupla indenização)
Figurando na galeria dos grandes diretores de Hollywood, Billy Wilder transitou por diversos gêneros em sua filmografia, no entanto, ‘Pacto de sangue’ e ‘Crepúsculo dos deuses’ (1950) exprimem seu talento para narrativas sombrias, trabalhando a essência do cinema noir em sua temática e tratamento visual. Ambos os filmes tratam da decadência moral, sobretudo, dos seus personagens. Ambas as histórias tratam de um crime e sua investigação. Wilder optou por delegar aos protagonistas a narração de suas próprias histórias, em flashback, claro. A partir do relato oral de Neff, que se materializa em imagens e sons, somos levados a nos envolver com as desventuras desses subnarradores, aqui incluindo o desventurado roteirista Joe Gillis (William Holden) de ‘Crepúsculo dos deuses’.
O estilo visual dos filmes noirs, em consonância com outro movimento cinematográfico, o expressionismo alemão, privilegia as significações expressas na iluminação com forte embate entre luz e sombra e também com estreita conformidade com os temas sombrios dos filmes, numa época particular do contexto social e político dos Estados Unidos. Com o sentimento de segurança e estabilidade em xeque, o cinema absorveu mais facilmente uma concepção niilista do homem e de sua própria existência, tratando de temas funestos como alienação, corrupção, desilusão, neurose que alimentaram os argumentos noirs. O cinema noir, considerado um ciclo do cinema norte-americano, converteu-se num dos movimentos mais importantes da história do cinema.