Em 1972, o cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) adaptou sua peça homônima ‘As lágrimas amargas de Petra Von Kant’ para o cinema. Todo o enredo se passa dentro de um apartamento que abriga as desventuras amorosas de Petra (Margit Carstensen), personagem que dá título ao filme, uma estilista renomada e arrognte que explora sem pudor sua secretária Marlene (Irm Hermann), uma espécie de governanta, que organiza sua vida doméstica e profissional. Ao conhecer a arrivista Karin (Hanna Schygulla), apaixona-se perdidamente. Todo o conflito dessa história, despudoradamente melodramática, se dá em torno dos altos e baixos (mais baixos, melhor dizendo) dessa conturbada relação.
O mesmo enredo é retomado, desta vez, pelo francês François Ozon em ‘Peter Von Kant’ (2022, 1h26min), em cartaz no Cine Banguê do Espaço Cultural dentro da programação do Festival Varilux do cinema Francês. Adaptando sua história para o universo masculino, Petra agora é Peter (Denis Ménochet, numa interpretação magistral), um cineasta alemão de sucesso que é apresentado por Sidonie (Isabelle Adjani), atriz e sua melhor amiga, ao belo imigrante Amir (Khalil Ben Gharbia). Peter vive com o seu assistente/mordomo, o subserviente e misterioso Karl (Stefan Crepon) a quem tem prazer de menosprezar.
A aparição de Amir na sua vida vai nos revelar o romantismo acerbado e pueril de Peter que se anula servilmente em face à beleza e juventude do outro. E amir sabe como tirar proveito disso sob os olhos incrédulos de Karl que parece nutrir um forte afeto pelo despótico patrão. Outrora musa do diretor, Sidonie, finge, por sua vez, uma certa condescendência em relação a Peter, sempre no papel de amiga confidente e pronta a aconselha-lo enquanto aspira volta a protagonizar um dos seus filmes. Ambos estão infelizes no amor. Neste campo, Fassbinder foi um grande expertise em melodramas e Ozon, neste remake, demonstra domínio do gênero.
Como no filme de Fassbinder, as ações de ‘Peter von Kant’ se passam todo o tempo no interior do luxuoso apartamento de Peter, salvo em quatro breves externas: o prédio visto de fora, uma rua onde numa cabine telefônica Amir parabeniza Peter pelo aniversário e, nesta mesma cena, desta vez no interior do carro com Sidonie e Amir. A outra é quando Karl abandona o patrão. Em filmes psicológicos, é natural que o enredo reduza suas ações a uma quantidade menor de locações, ao contrário dos chamados filmes de ação onde os espaços se multiplicam ilimitadamente, sobretudo em cenas de perseguição. Num enredo psicológico, o conflito é o motor da história e tem a atribuição (nada fácil, convenhamos) de levar a trama adiante.
No filme em questão, o conflito se dá através dos diálogos, irônicos e, amiúde, violentos. Igualmente pequenos gestos e ações dos personagens protagonistas Peter e Amir. O mordomo Karl, taciturno, presente em quase todas as cenas, está perfeitamente caracterizado. Sua eloquência está no olhar, postura física e gestos, o que torna sua presença marcante na trama. O que diferencia um melodrama folhetinesco, tão explorado nas telenovelas de um melodrama autoral de um Fassbinder ou Almodóvar, por exemplo? Talvez esses diretores não façam melodramas com o fim de comover e fazer chorar o espectador, mas de aguçar sua visão crítica no tocante a relacionamentos obsessivos e exageradmente dependentes.
O curioso é que François Ozon recebe o reconhecimento da crítica em 2000 com ‘Gotas d’água em pedras escaldantes’, igualmente uma adaptação de uma peça de R. W. Fassbinder, que lhe deu o Prêmio Teddy de Berlim de melhor filme LGBTQIA+. A partir daí, Ozon passou a ser assíduo com suas obras (‘8 mulheres’, ‘O refúgio’ ‘Potiche – Esposa troféu’, ‘Graças a Deus’) nos festivais internacionais mais importantes do mundo. Ozon, ao homenagear Fassbinder, faz jus ao mestre alemão. Esta homenagem também incluiu a presença da lendária atriz Hanna Schygulla de volta, desta vez, como Rosemarie, a mãe de Peter.