Nascida na época analógica, eu sou da era do papel, dos bilhetinhos, do jornal impresso, da 5ª série que hoje se chama 6ª (devido à implantação do ensino fundamental de nove anos). Hora ou outra, trago em mim a “Síndrome da 5ª série” — povoada de dúvidas, constrangimentos e risinhos — e me divirto trocando mensagens típicas dessa fase com colegas antigos. Infelizmente, tal síndrome também habita as manchetes. Sim, pela busca desmedida por cliques, leia-se mais audiência, muitos veículos de comunicação têm deixado a turma da 5ª série muito à vontade nas redações.
No dia 16 de junho deste ano, por exemplo, o portal Metrópoles estampou em um de seus títulos: “Pika, de 20 cm, é ameaçado de extinção”. Em jornalismo, “pica” (pronuncia-se paica) é a medida tipográfica que corresponde a 12 pontos do sistema anglo-americano (aproximadamente 4,218 mm ou 0,166 polegadas); popularizou-se no Brasil nos anos 1970. Em português de Portugal, “pica” significa cheio de vigor, de vontade, de pique. E é comum que nossos irmãos lusitanos falem a expressão: “Cheio de pica”, ou seja, cheio de entusiasmo; ou “Assim não dá pica”, assim não dá vontade.
No linguajar brasileiro, “pica” é o nome chulo dado ao pênis. E foi isso o que fez emergir a manchete publicada no Metrópoles, para falar sobre um mamífero de apenas 20 centímetros que corre o risco de desaparecer. Ao ser postada no perfil do Instagram, tal manchete rendeu curtidas e milhares de comentários.
A 5ª série que habita a audiência saudou com entusiasmo a 5ª série que habita o Metrópoles. Quem redigiu o título esperava isso mesmo: engajamento. Apenas de comentários, a postagem sobre o pika de 20 centímetros ameaçado de extinção recebeu 4.473! A maioria, como a redação imaginava, tinha conotação sexual, ainda que a notícia estivesse ilustrada com uma foto do animalzinho chinês. Um internauta percebeu bem a intenção do Metrópoles: “Não tem um comentário sério. Parabéns pro estagiário que elevou o engajamento da página”.
Além do Metrópoles, outros veículos seguiram essa linha, colocando o termo “pika” no título, porém de forma sutil. Foi assim n’ O Globo: “Pika, mamífero de apenas 20 cm, entra na lista de animais ameaçados de extinção”. A coluna Splash do UOL, inclusive, chegou a abordar o tema no YouTube, após o burburinho na internet: “Pika de 20 cm em extinção! Entenda a piada das redes sociais”.
Verdade seja dita. Houve colegas que trataram o tema da forma devida, a exemplo de notícia assinada por Camilla Freitas, na seção Ecoa do UOL, com o título “Pikachu? Tímido e com apenas 20 cm, animal está ameaçado de extinção”. A matéria explica que o pika de lli é um dos animais mais raros do mundo, informa como se deu sua descoberta e que ele pode desaparecer. O texto também aborda o boato espalhado nas redes sociais de que o bichinho teria sido inspiração para o mais famoso dos pokémons, o Pikachu (daí a referência no título). Não foi.
A disputa entre veículos por audiência é grande, eu sei. Mas é importante que alguém na redação tenha discernimento (e coragem) para lembrar a função social do jornalismo, que vai além da busca por clique e engajamento. Jornalistas têm a missão de informar, denunciar, fiscalizar, interpretar dados e fatos, traduzir informações, ajudar o leitor/internauta/telespectador a refletir e a saber por que também é importante tirar a casquinha e apertar o dedo bem fundo na ferida! Jornalismo não é entretenimento, entretenimento não é jornalismo. Levar o leitor a trocar um pelo outro é desonestidade. Não tem graça alguma.