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Viagem no lombo de um burrinho

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Em 1946, o mineiro João Guimarães Rosa publicou uma coletânea de contos que já chamava a atenção pelo nome: Sagarana, formado pela junção de saga (radical germânico que remete à epopeia) + rana (radical tupi: à maneira de). A obra traz a genialidade Roseana, marcada pela inventividade, pela criação, pelo olhar de “poeta” por meio do qual o escritor traz as suas narrativas que têm como tema central a vida rural de Minas Gerais.  É em Sagarana que encontramos alguns contos célebres como “Sarapalha” ou “A hora e a vez de Augusto Matraga” e é nessa obra que me inspirei para escrever a “Viagem no lombo de um burrinho”.  

 ***

Esses rabiscos são o que a memória de um velho deixa revelar da longa estrada que percorreu, durante mais de setenta anos, no lombo de um burrinho pedrês. Deixo o leitor avisado de que se trata de reminiscências, de lembranças que se misturam, confundem-se entre fantasias e sonhos, ficção e realidade, sendo algumas das histórias que contarei a mistura da minha imaginação, da demência que teima em querer me dominar com o muito que em mim ficou gravado das aventuras da Sagarana do Seu Rosa. 

Foi num dia igual a todos os outros que o meu caminho se cruzou com o de Setede-ouros, um burrinho que, como a maioria dos da sua laia, gostava mesmo era de ficar no seu canto, sem se meter muito nas confusões dos outros. Mesmo assim, não sei se por força do destino, a vida do bicho virou um nó dos diabos, pois não parara mais nas mãos de ninguém depois que o Major Saulo o acusou de ser o grande culpado da tragédia que matou seus melhores homens na enchente do Rio da Fome. – Esse burro é amaldiçoado, gritou o major, no dia em que, sem dó nem piedade, mandou jogarem o pobre Sete-de-ouros na estrada. Mas, o bom de ser burro é que se vai levando a vida assim sem muito aperreio, um dia depois do outro e daí por diante. Desalojado, ele caminhou sem destino até encontrar a fazenda Minha Gente, onde ficou durante um mês, até que por lá chegou sua fama de famigerado, que o levou a ser expulso de vários outros lugares. 

Eu era apenas mais um camumbembe das Minas Gerais no dia em que tropecei no burrinho que cochilava no meio da estrada. Examinei o animal bem de perto e concluí, pelo seu estado de pura magreza, que se tratava de um ser jogado a Deus-dará. Por piedade, ou por pensar que aquele bicho poderia ter alguma serventia para quem não tinha nada na vida, levei-o para casa, onde compartilhei com ele tudo que eu tinha: um pouco do que comer, água fresca para beber e uma sombra para descansar. Até hoje matuto comigo, incrédulo leitor, como fui cruzar meu caminho justamente com o do burrinho pedrês da história do Seu Rosa que me fazia companhia naquele tempo. Se isso acontecesse comigo hoje, seria algo facilmente atribuído às doidices desse velho sozinho, que passou a vida ao lado de seres que não existem, de histórias criadas pela mente de pessoas que gostam de reinventar o mundo com a linguagem. Sendo realidade ou fantasia, sigamos. 

O fato é que levei o burro para casa e por lá vivemos em paz alguns meses, sempre naquela vidinha a que eu estava acostumado e que Sete-de-ouros realmente apreciava. O tempo, contudo, faz com que tenhamos que decidir entre comer o mesmo pão duro e sem graça de todos os dias ou partir em busca de novos sabores. Matutei muito no dia que decidi abandonador tudo, montar no lombo do meu burrinho e ir embora. Olhei ao meu redor e vi que nada me prendia a uma terra que não poderia mais alimentar meu corpo calejado e muito menos o meu espírito inebriado dos causos que li. Sou mesmo ensimesmado e me dou melhor com os bichos do que com gente, como Fabiano de Seu Ramos. 

No dia em encontrei Sete-de-ouros, olhei bem em seus olhos e vi que neles não havia sinal de culpa ou de remorso pela morte dos boiadeiros. Os homens querem botar cabresto no burro, fazê-lo abaixar as orelhas, mas quando a má sorte chega tiram logo o corpo fora e colocam toda a culpa no animal. Além dos bichos, só conseguia mesmo me entender com as letras, o que para muitos é espantoso, já que a minha aparência bruta e meu quase nenhum contato com a escola parecem dizer justamente o contrário. Sempre há os caixeiros-viajantes, caro leitor! Livros que ninguém quer por aqui chegam com suas histórias fascinantes. Arrumando meus farrapos, senti-me como aquele cavaleiro Dom Quixote que, montado no que para ele era a melhor das montarias, percorreria os mesmos caminhos e viveria as mesmas aventuras tantas vezes lidas nos seus romances de cavalaria. 

O meu destino estava traçado e a ele eu seria guiado pelo meu burrinho pedrês, assim como aconteceu com nhô Augusto, na sua “hora e vez”. Se um homem ruim daqueles terminou a vida fazendo algo de tanta bravura, por que eu terminaria a minha sem nenhuma aventura? Augusto Matraga morreu como um herói. Os caminhos da Sagarana muitas vezes foram difíceis de ser percorridos no lombo de um burro velho e cheio de vontades, que nem sempre se esforçava para ultrapassar as barreiras da linguagem que pareciam impossíveis de serem vencidas. Em certos lugares, foi preciso que eu ficasse dando voltas, perdido, sem nada entender, buscando entrar em um mundo tecido fio a fio por aquele inventor de palavras. Mesmo assim, puxando pela memória, vejo que tive mais prazer do que dificuldade ao longo dessas paragens tortuosas. 

Faz tanto tempo… De tanto esqueci… Fecho os olhos e ouço o choro de um menino. Quem é esse menino que chora e canta essa cantiga tão triste, que dói no fundo do meu coração? Ele não chora sozinho! Um boi chora com ele… É o zebu Calundú que até hoje se arrepende por ter matado o pobre do seu Vadico, que tinha um coração de anjo e gostava tanto dos bichos. O menino canta. Seu Raimundão dizia que ele era um negrinho de olhos arregalados que só queria voltar para casa e sumiu uma noite para nunca mais… 

Logo no começo da nossa viagem, passamos pela fazenda do Major Saulo e tive vontade de entrar para ver de perto aquela boiada, o que não aconteceu porque o burro resolveu empacar na porteira da fazenda e não teve reza que o tirasse de lá. De longe, olhei nos olhos daqueles bois e um arrepio percorreu todo o meu espinhaço. Boi sim que é bicho danado de esquisito e misterioso. Dizem que conversam. Você acredita, Sete-de-ouros? Você não está escutando o ranger do carro? Nhein…nheinhein…renheinhei… 

Penso agora em como Seu Rosa conhece bem a natureza. Tenho quase certeza de que ele fala a língua dos bois, das árvores e de toda essa infinidade de seres minúsculos que existem aqui em Minas. Ele também aprendeu a colher a música do mundo, os sons da natureza, o ritmo da vida e transformou tudo em poesia. Por conta do poeta cantador de histórias, conhecemos muitos homens, de todos os tipos e índoles, como o malandro do Lalinho que, com tão pouco estudo, acabou fazendo carreira na política por conta da sua lábia sem igual. Astuta também era Maria Irma que acabou casado com o homem que queria por ter aprendido a jogar direitinho o jogo do amor. A pobre da Dona Ritinha é que nunca soube e até hoje sofre nas mãos daquele sem jeito do Salãthiel. Deveria mesmo ter ficado com o espanhol. 

Talvez fosse melhor se eu abrisse o livro do Seu Rosa ou procurasse algum registro que me ajudasse a melhor alumiar essas memórias que agora me parecem rabiscos de um louco. Onde está guardado? Tudo parece tão desbotado pelo tempo, tão destruído pelo pó e pelas traças. E esse zumbido no meu ouvido? E essa picada dolorosa na minha cabeça? É a maleita que quer me pegar. Lá no Val da Sarapalha não sobrou ninguém porque essa praga levou todo mundo embora. Tu queres me matar também, sua desgraçada? Quando eu e Sete-de-ouros chegamos a Tapera do Arraial, primo Argemiro e Primo Ribeiro já tinham morrido há muito. A preta, que não se sabe por que nunca adoeceu, tinha ido embora. O perdigueiro velho eu trouxe comigo. 

Será que vou conseguir terminar essa história sem pé nem cabeça? Com a tarde chegando, sinto-me como os primos que deliravam com a febre. Meus pobres bichinhos se foram, todos me deixaram e fiquei sozinho aqui com minhas lembranças embaralhadas. Queria recordar apenas mais uma história. Talvez aquela de São Marcos… e adianto que, se você não acredita em feitiçaria, é melhor não se embrenhar por essas matas. Ando sempre com aquelas santas palavras no bolso, para um caso de necessidade. Estou quase desistindo. O bom mesmo seria poder ler tudo de novo, montar no lombo do meu burrinho, ouvir o latido do perdigueiro, a passada marcada dos bois, o choro do menino. Que frio! A febre está voltando. Venha me buscar, Sete-de-ouros. Vamos embora para a Sagarana porque foi Seu Rosa quem mandou me buscar. Aguente, seu burro preguiçoso, porque dessa viagem não voltaremos nunca mais.

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